A Entidade Serva e o Servo da Entidade

A Entidade Serva

   Antes do anexo da entrevista anterior eu estava relatando a conversa minha com Daren, muito abalado, após ele ter conversado com um cão que invadiu o porão da clínica. Graças a esse artigo que guardei, com a entrevista do professor Akshan, posso agora identificar a entidade que se manifesta como um cão para Daren. E não é um demônio, um deus antigo, ou algo assim. Algo que eu esteja familiarizado por já ter evocado em minhas experiências místicas. Não, o ser que se manifesta para Daren é muito mais perigoso e é, em essência, uma insanidade. 
   “Insanidades” é um termo que eu uso para entidades imateriais que se tornaram obcecadas com uma ideia, um conceito, etc; essas entidades tornam-se, com o tempo, a própria personificação de sua própria ideia, devido à sua natureza imaterial. A obsessão delas, somada ao seu poder imensurável, dão motivo claro ao termo “insanidade”; mas essas não se pode prender com camisa-de-força.


   Eu me lembro de uma vez em que eu evoquei uma dessas entidades obcecadas. Após um procedimento que eu jamais repetiria hoje e nem mesmo ouso citar aqui, a entidade se manifestou no meu porão, em forma de Xenófilo. Xenophilus, dizem os magos antigos, que o entendiam como uma criatura baixa, antropomórfica e extremamente pacífica. De fato, minha interação com essa entidade, de nome Gusayn, foi muito pacífica de início; ela poderia me responder a qualquer tipo de pergunta que eu fizesse, Guayn, como muito outros, serviam a quem lhe evocasse. Mas Gusayn mostrou-se uma insanidade, obcecada com o ideal do exílio, de manter afastado. Não permitia que eu me aproximasse e agia de forma elusiva e autodefensiva, como uma fera acuada. Embora um de seus feitos mais comuns fosse aproximar pessoas, Gusayn, manifestado como essa tal criatura Xenófilo (“gostar do diferente”), repudiava proximidades. Eu, que tinha evocado esse ser, não para que me servisse, mas por pura curiosidade, fiz-lhe uma pergunta pessoal, uma pergunta sobre ele: sua idade e como e quando surgiu.
   O maior erro da minha vida. A criatura, em uma reação mista entre fúria e desespero, olhou em meus olhos com olhos arregalados e objetivos. Então senti meu âmago sendo empurrado de mim. Não, ele não era algum tipo de vampiro sugador de vida, ele estava fazendo o oposto! Tentava arrancar a existência metafísica do meu corpo, não para si, mas longe, muito longe. Percebi que ele tentava transferir a essência do meu ser para um mundo distante do mundo físico, uma espécie de limbo, onde tudo se cancela e permanece inerte. Eu já sabia sobre esse limbo, que pouco a pouco, apagava a realidade. Era assunto presente em muitos dos meus estudos. E como defesa instintiva usei Galdr, a arte mágica de pronunciar runas nórdicas. Pronunciei a runa que neutraliza, uma runa de proteção:
   “Thoor-ee-saws.” A criatura insana, imediatamente, se reduziu a um mero vulto; mas não antes de reverberar uma frase em latim, por todo o porão: “Numquam ens accedere”, algo como “não se aproxime de entidades”.
   A descoberta do professor Akshan, sobre essas entidades primordiais, obcecadas, lançou muita luz aos meus estudos. Não me pareceu que Gusayn fosse uma daquelas entidades supremas, mas o manuscrito indicou que poderiam haver mais do que as descritas, menores, menos influentes.
   Mas de uma coisa eu estou certo. A entidade que se manifesta para Daren não é de pouca importância. Tenho fortes suspeitas que seja Ahura-Mazda, a entidade que ordena o universo à sua maneira. O que essa insanidade quer com Daren? Que préstimos Daren deverá prestar a esse ser? E o mais importante: como ludibriar essa entidade que já se decidiu a executar o meu pobre amigo?


O Servo da Entidade 

   Daren foi dormir na noite seguinte, preparado para reencontrar o cão que apareceu para ele. Continuou dormindo por 5 dias! Como se estivesse em coma.
   E no que seria o nono dia de sua internação na clínica. Daren acorda extremamente abatido, cheio de arranhões pelo corpo, pedindo minha ajuda; dizendo que terminou a missão do cão e agora está com medo dele vir matá-lo como prometeu.
   Tentei acalmá-lo o melhor que pude e o encorajei a me contar em detalhes o que se passou.

“Eu fiz, Adler, fiz o que aquele cão me comissionou a fazer! Ele apareceu novamente quando me deitei. Sempre quando não há ninguém por perto. Doutor não quero mais ficar sozinho, ouviu?” 

“Não te deixarei sozinho, Daren, e acredite quando eu te digo que já lutei com seres parecidos; mas você precisa continuar o relato para eu poder te ajudar.”

   Eu voltei até para aquela floresta, àquela estrada e segui o caminho. Estava amanhecendo e eu sentia o frio da manhã. Eu contava apenas com a iluminação natural, azulada, de uma manhã nublada. Depois de uns dois quilômetros, eu cheguei até uma vila. Sim, era mesmo uma vila da época da fundação de Sorocaba, eu já tinha estudado sobre isso.
   Havia a casa principal, do capitão. E algumas casas ao redor, para servos e empregados. A vila, que não consegui identificar com nenhuma vila que os historiadores citam, foi fundada para tentar extrair minério na região. Eu podia ver, na luz tênue da manhã o famoso pelourinho, um monumento muito comum na época, e preso a ele, um homem.
   O homem, adormecido, eu presumi que tenha aprontado alguma e foi amarrado ao pelourinho como punição. Pois o pelourinho foi símbolo de ordem e de autoridade, na época.
   Fiquei ali, sentado na estrutura de um poço, enquanto, aos poucos, as luzes das casas se acendiam e os servos e empregados começavam a correr atarefados.
   Logo notaram minha presença, mas ela fora anunciada ao capitão somente alguns minutos depois, pois todos estavam atarefados.
   Então o capitão, falando um português arcaico e aproxima de mim e diz:
   “Sou o capitão Teodoro Graciano e sou o responsável por esse arraial, fundado faz alguns meses atrás. E tu, quem és?”
   A minha resposta foi por puro instinto: Não me lembro, bati a cabeça, etc.
   O Capitão me abrigou na casa de um dos seus empregados de confiança. Uma família indígena que falava mal português. Claro, tive que trabalhar pela comida e abrigo.
   Enquanto roçava o mato, junto com a moça indígena. Busquei por informações que seriam úteis na minha missão.
“Existe algum mosteiro por perto?”
“Mosteiro, não. Existe um presbitério perto, construído para educar índios. Mas mosteiro eu conheço só de nome.”
   Eu pensava no mosteiro de São Bento, mas percebi que a época era ainda anterior à construção do mosteiro.
   Mas a moça tupiniquim continuou: ‘Se vós me cê pensa em rezar, toma cuidado. Muita gente morreu nos últimos dias.”
   “Morreram como?”
   “Atacados. Pode ser índios, pode ser onça. Esse lugar é perigoso pra ficar. Eu acho que logo abandonaremos esse lugar. Mas o presbitério fica ali perto do cemitério.”
   “Obrigado. Vou passar lá no meu tempo livre.”
   “Sempre tem padre lá.”
   Eu trabalhei todo esse dia. Comi uma comida horrível e dormi em cama de palha. No outro dia, de manhã, apenas fugi do assentamento.
   Fugir é modo de dizer. Mas eu não iria esperar que começassem a achar que eu sou um assassino ou algo assim. Havia um clima de muito medo ali, com esses tais assassinatos. Mas eram, naquele momento, eventos secundários à missão daquilo, aquilo a quem eu fui obrigado a servir, para poder ter uma morte clemente... ham!

   “Continue, Daren. Não se perca. Resolveremos isso depois.”

   Eu encontrei o presbitério, afastado umas dezenas de metros da vila, apenas. Era no sope de uma pequena serra. Eu me escondi nas árvores no topo da serra e comecei a espiar o movimento. 



   A vela sendo acesa, para rezar ou para iluminar a escura manhã, um caminhar lento de um padre pela janela. E pude ver um belo curativo em sua mão. Fiquei pensando que atividade um padre, que passa o tempo todo trabalhando dentro de uma pequena igreja, poderia fazer com que ele machucasse a mão com certo grau de severidade.
   A luz do dia raia forte e as velas de dentro da igreja se apagam. O padre vai para seus aposentos estudar. Até o meio dia, nada de estranho além da mão machucada. Mas que já é motivo o bastante para eu tentar tirar alguma informação desse padre. 

   Mas Daren, você ainda nem me contou qual foi essa sua missão?

   Meu caro Apolo, o que eu descobri ao visitar essa época mudou para sempre o que pensava sobre a história, sobre o que certas pessoas sempre souberam e mantiveram em segredo; sobre o que vem acontecendo debaixo dos panos desse planeta a muitos séculos, talvez milênios. Eu não vou guardar esse segredo de você, amigo. E minha missão ficará cada mais clara conforma eu contar o que aconteceu: Há forças tentando sabotar o tempo!




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