As mais antigas, e macabras, versões da Chapeuzinho Vermelho.

   É incrível como uma história com milênios de idade, após ser recontada milhões de vezes sofre inúmeras alterações mas preserva elementos essenciais que não permitem que simplesmente se transforme em uma outras história completamente diferente.
  Na última versão que conhecemos ("Deu a Louca na Chapeuzinho") a chapeuzinho é uma menina bem esperta neta de uma velhinha mega radical, o lenhador é um idiota e o lobo um detetive.
   Mas os elementos ainda estão lá: o gorro vermelho, a vovó, o lobo. Elementos esses com milênios de idade.
   Como teriam sido as histórias originais? E, o mais importante: Porque teriam sofrido modificação? O exemplo da chapeuzinho vermelho dá uma boa ideia do porque essas histórias se modificaram ao longo dos séculos: para poupar os nossos queridos filhinhos dos verdadeiros horrores das histórias originais. Este artigo é mais um tributo profano ao mês do Halloween, aproveitem!
   "Aahh! Então, inicialmente era uma história para adultos, tipo +18!" - Você pensou assim? Enganou-se. Eram mesmo contadas para crianças, mas não para diverti-las, e sim para protegê-las. Para fazer elas ficarem medo... muito medo... de saírem para a floresta sozinhas. Algumas histórias ainda tinham funções mais específicas: proteger as moças contra predadores sexuais; sim, a chapeuzinho vermelho é um exemplo de histórias contadas para proteger as moças.

  História de mocinhas com capuz vermelho eram contadas oralmente desde épocas imemoriais. Pelo visto a história original surgiu na França. A parte mais interessante dos contos de fadas é que não possuem um único autor, mas sofrem inúmeras modificações anônimas quando são adaptadas para as necessidades de um povo e até de uma única família antiga.
   Essas mudanças podem ocorrer até inconscientemente. Eu próprio, reles escritor que vos escreve, fui vítima dessa consciência coletiva que se chama contos de fadas. Somente após ter terminado um conto, chamado "O Sumiço do Bebê", eu notei influências da chapeuzinho vermelho na história.
   Eu havia escrito esse conto paralelamente às minhas pesquisas sobre a história da chapeuzinho vermelho. Eu percebi que eu havia colocado em meu próprio conto, inconscientemente, muitos elementos das versões orais mais antigas do conto da chapeuzinho: o filhote de lobo, a toca, o rapto, o antropomorfismo dos lobos, etc. (este conto pode ser lido no livro Tenebra, há um link ao lado, se desejar saber mais).
  Na tentativa de rastrear as origens da história da "chapéu", eu encontrei contos folclóricos extremamente antigos que trazem elementos da história da Chapeuzinho Vermelho. Podemos ver que estas histórias, um pouco diferentes das atuais, foram ancestrais literários, se podemos colocar assim, do conto da chapeuzinho como conhecemos. 
    Um conto compilado por J.G. Frazer, no folclore oral do sul da África, em 1889,  conta a história de um Ogro que rapta uma garotinha imitando a voz do seu irmão, assim como o lobo imita a voz da vovó; no final o Ogro come a garotinha mas é retirada sã e salva de dentro das entranhas do Ogro, o que é um final semelhante, para não dizer idêntico, da versão dos irmãos Grimm da Chapeuzinho. Porém, a idade desse conto africano não pode ser muito mais antiga.
   Percebam também que contos de fadas podem viajar pelas eras e pelo mundo inteiro; eu fico imaginando forasteiros, naquela época, contando histórias de seu próprio povo, para depois serem adaptadas no folclore dos ouvintes.

    De Puella a Lupelis Seruata - "A garota salva dos cachorrinhos." (França 1022-1024 EC, Era Comum ou a.D)   


    A versão mais antiga de uma menina de capuz vermelho que se tem notícia foi registrada por um professor de uma escola catedrática chamado Egbert of Liege, em seu livro, Fecunda Rátis, ainda entre 1022 e 1024 Era Comum (ou a.D) Nesse livro, Egbert compila diversas fábulas e poesias contadas oralmente pelos aldeãos da época. 
   O conto "De puella a lupellis seruata" (A garota que foi salva de filhotes de cães) conta que uma garotinha passeava inocentemente pela floresta mas é capturada por um lobo que a joga dentro de sua toca para alimentar seus filhotes. Mas a menina se salva por domesticar os filhotes por meio de seu capuz vermelho mágico presenteado por sua avó no dia do seu batismo. 
   Egbert pareceu usar esse conto para prover alguma lição religiosa e, dado aos aparentes eufemismos, ele pode ter adaptado a história original, que poderia ter sido bem mais macabra, embora não saibamos como essa história era contada oralmente.


   虎 姑 婆   "Ho Ko-bo" - A Tia-avô Tigresa (Taiwan, século XVI)
 
   Agora, deem uma sacada nesta antiga história infantil chinesa e me digam se ela não parece muito com a história da chapéu, só mais tenebrosa.
  Esta lenda chinesa conta que, quando Koxinga (personagem histórico) expulsou os holandeses de Taiwan em 1662 trouxe um casal de tigres para a ilha de Taiwan, onde não há tigres nativos. 
   Mas os tigres fugiram de suas jaulas, na fortaleza Zeelandia. O tigre macho foi visto próximo a uma aldeia sem nome de Taiwan e foi morto pelos aldeões. Por não conhecerem tigres ele pensaram ter matado um grande cão, assim a aldeia foi chamada de Takao (打 狗). Mais tarde essa aldeia recebeu o nome com é conhecido hoje: Kao Xiong.
   O mesmo teria acontecido com a tigresa, que rumou para outra aldeia e foi caçada. Os aldeões a consideraram como um grande gato e nomearam a aldeia de Taniao ( 打 貓) hoje conhecida como Ming Xiong.

Teatro de Fantoches encenando a história da Ho-Ko-bo

   Mas essa lenda, que pode ser, por que não, um fato histórico até aqui, começa a ficar muito parecida com o conto da Chapeuzinho.



   Dizem que a tigresa não morreu na antiga Taniao, mas sobreviveu e ficou muito velha e a chamavam de Ho-ko-Bo, "tia-avó tigresa".
   Em uma pequena vila remota, pelo visto Taniao, uma viúva mãe de duas filhas saiu para ver sua tia-avó. 

   Antes de sair, ela teria alertado suas filhas: "Cuidem bem da casa. Ao anoitecer não se esqueçam de fechar todas as portas e as janelas e não deixem ninguém entrar. Porque pode ser a tia-avó tigresa vindo comer vocês. Volto amanhã."
   Após a mãe ter saído as meninas fecharam bem as portas e as janelas como sua mãe havia alertado.
   Durante a noite, as meninas ouvem alguém bater na porta: "Abram sou sua mãe!" As meninas sabiam que sua mãe não voltaria tão cedo. Além disso a voz soava bizarra e não como a de sua mãe:
   "Vocês não é nossa mãe. Você tem voz diferente!" - respondem.
   "Abram sua meninas estúpidas. Sou eu, sua mãe!". As meninas ficaram em dúvida, poderia ser a mãe delas, afinal, e as batidas na porta não as deixariam dormir. Elas resolveram abrir. Era uma bruxa velha, toda enrugada e com os olhos brilhando que nem relâmpago! "Quem é você?" As meninas perguntaram assustadas.
   "Sua estúpidas! Sou sua tia-avó. Sua mãe me pediu para vir aqui porque pensou que você poderiam ter dificuldade para dormir e me pediu para fazer companhia a vocês." As meninas, que nunca haviam visto sua tia-avó acreditaram na velha.
   Ela cuidou bem das meninas e as levou para cama. No que mostrou a elas uma almofadinha.
   "Aquela que conseguir erguer a almofadinha mais alto vai dormir do meu ladinho."
   A irmã mais nova era muito espertinha e suspeitou que poderia ser a tia-avó Tigresa. Ela fingiu que não conseguia levantar o travesseiro. Então ela foi colocada em um berço enquanto a filha mais velha, junto com a velha foram para um outro quarto dormir juntas.
   Quando era meia noite a mais nova acordou ouvindo o barulho de alguém comendo algo crocante. Do berço, ela perguntou:
   "Tia-avó, o que você está comendo!"
   "Hã. Eu... eu estou comendo amendoim."
   "Humm, eu amo amendoim! Me dá um pouco?"
   A velha jogou alguma coisa para o quarto da meninas mas, quando ela pegou não era amendoim e sim um dedo mindinho! A menina correu em disparada.
   "Não tente correr! Eu comi a sua irmã e vou comer você no café amanhã!" A Tia-avó tigresa correu pro quarto da menina e a amarrou.
   A menina pensou em usar um truque pedindo para ir ao banheiro, que ficava fora da casa, para "aliviar a natureza".
   "Não vou te soltar, Você quer é fugir"
   "Não tia-avó eu estou pronta para ser comida. Se quiser, me amarre em uma corda e fica me segurando enquanto eu entro na casinha. Assim que eu me aliviar eu volto."
   "Faz sentido" Respondeu a tigresa. "Posso puxar a corda pra sentir você lá."
  Quando o plano foi executado, a menina amarrou a corda no balde cheio de água e fugiu pela janelinha. A Tigresa puxou a corda, suspeitando da demora, assim o balde derramou a água e fez a Tigresa pensar que a menina estava fazendo xixi.
   Quando a Tigresa finalmente viu o balde caído ficou furiosa e passou a caçar a menina pela floresta iluminada pela lua cheia.
   A Tigresa parou em um riacho para beber água e viu o reflexo da menina em cima de uma árvore.
   "Desce!" E começou a roer o tronco da árvore.
   "Tia-avó. Não roa a árvore! Eu desço para você me comer se você me realizar um último pedido. Eu queria um pouco de óleo pra fritar e comer esses passarinhos que estão dormindo aqui em cima. Me traz óleo fervendo?"
   "Bom até que o pedido é razoável. Eu já volto!" Então ela voltou com uma Wok, espécie de fritadeira chinesa, cheia de óleo de amendoim fervendo e amarrou na corda. Então jogou a outra ponta da corda para a menina puxar para cima.
   A menina fritou os passarinhos e comeu. "Agora estou satisfeita, vou saltar direto para a sua boca, tia-avó; abra a boca e fecha os olhos."
   A Tigresa abriu a bocarra e fechou olhos esperando se deliciar com a carne macia da menininha. Então ela jogou o óleo direto na boca na Tigresa que morreu na hora.
   Agora tanto o tigre como a tigresa trazidas por Koxinga estão mortos e nunca mais foram vistos.



   Versões do folclore oral francês. A chapeuzinho tem nome. (século XVI)
  
   Charles Perrault, ao escrever o que seria a primeira versão impressa da Chapeuzinho Vermelho, em 1695, considerada a "original", ele se baseara em contos que eram tradição oral da sua família. 
   No folclore oral francês, os antropólogos estudaram diversas versões da histórias da chapeuzinho, conhecidas simplesmente como "A História da Vovó", e que variavam de família para família.
   Muitos desses contos, semelhantes ao conto da Ho-Ko-Bo, a menina descobre o disfarce do lobo e pede para ir ao banheiro, fugindo pela janela e amarrando o tronco a uma árvore. 
    Em outras versões, uma menina chamada Catterinella levava uma cesta bolos para sua tia ou tio, mas que, na verdade, era uma bruxa (quando tia) ou um lobisomem (quando tio). Mas a menina come o bolo e coloca esterco de burro no lugar. Quando o tio ou a tia descobre vai até a casa da menina e a devora na cama.

   A versão "Original" de Charles Perrault - (1697 EC) 

   O conto de Perrault, baseado em histórias de sua família, foi publicado impresso em 1697 EC, já intitulado como conhecemos hoje: Le Petit Chaperon Rouge (A Chapeuzinho Vermelho). Foi publicada junto com outros contos infantis em seu livro Les Contes de ma Mère l'Oye. (Os Contos da Mamãe Ganso). Estas seriam as primeiras histórias que terminam com a "Moral da História".
   Em seu conto mostra uma Chapeuzinho já moça e atraente que sai para visitar sua vozinha. Então ela informa ao lobo a direção da casa da vovó. O lobo evita assim os lenhadores, vai até a casa da vovó e a come.
   Se disfarça de vovó e engana a Chapeuzinho fazendo ela se deitar com ele na cama onde ele a come. Fim da história e já era a Chapéu.
   Em seguida Perrault explica a moral dessa história, que nos indica que o lobo comer a moça é, sim, uma metáfora para abuso sexual! Leiam:
  "Esta história se aprende que as crianças, especialmente as jovens moças, bonitas, simpáticas e bem-educadas, fazem muito errado em ouvir estranhos, e isso não é uma coisa inédita, se o lobo é assim fornecido com o seu jantar. Eu digo Lobo, mas todos os lobos não são da mesma espécie; há um tipo de lobo com uma vantagem - nem ruidosos, nem odiosos, nem com raivosos, mas mansos, prestativos e gentis. Seguem as jovens virgens nas ruas, mesmo em suas casas. Ai de mim! Quem não sabe que estes lobos suaves são as criaturas mais perigosas de todas!"
   Perrault entendeu que a história da Chapeuzinho, contada pela sua família, continha uma metáfora para alertar as crianças contra estupradores e pedófilos. Por isso o final e trágico, para horrorizar as crianças e fazerem elas terem medo de estranhos.

Outra versão bizarra e muito antiga.

   Todos conhecemos bem a versão clássica dos irmãos Grimm, que introduz o lenhador como herói, então não vou me dar ao trabalho de contar o óbvio. Irei contar versões posteriores mais sombrias.
   A seguinte história da Chapeuzinho foi compilada de uma versão francesa escrita por Paul Delarue, em 1951, no seu  Les contes Merveilleux de Perrault et la Tradition Populaire ( Os maravilhosos contos de Perrault na Tradição Popular) que mostra como a história variou na França à partir da história de Perrault. Apreciem agora a história na íntegra:


A história da Vovó

Havia uma mulher que tinha feito um pouco de pão. Ela disse a sua filha:"Vai levar esta broa quente e uma garrafa de leite para sua avó." Então, a menina partiu.
Na encruzilhada ela encontrou um lobisomem, que lhe disse:"Onde você vai?"
"Eu estou levando essa broa quente e uma garrafa de leite para minha avó".
"Que caminho você está tomando." disse o lobisomem, "o caminho de agulhas ou o caminho de pinos? "
"O caminho de agulhas", disse a menina.
"Tudo bem, então eu vou tomar o caminho da pinos".
O lobisomem vai correndo pelo caminho dos pinos e chega primeiro à casa da avó, a mata, a fatia e coloca um pouco de sua carne no armário e uma garrafa de seu sangue na prateleira.
A menina chega e bate na porta."Empurre a porta", disse o lobisomem, "está barrado por um pedaço de palha molhada."
"Bom dia, vovó. Eu lhe trouxe um pão quente e uma garrafa de leite."
"Coloque-o no armário, minha filha. Pega um pouco de carne, lá dentro e a garrafa de vinho na prateleira ".
Depois que ela tinha comido, houve um pequeno gato que disse:
"Phooey! ... Que vagabunda comendo a carne e bebendo o sangue de sua avó!".
"Despe-te, minha filha", disse o lobisomem, "e vem deite-se ao meu lado. "
"Onde devo colocar meu avental?"
"Jogue-o no fogo, filha, você não vai precisar dele mais."
E ela perguntou onde ela deve colocar todos as suas outras peças de roupa: o corpete, o vestido, a anágua, as longas meias, o lobo sempre respondia:
"Jogue-os no fogo, filha, você não vai precisa-los mais.
"Quando ela deitou-se na cama disse:
"Oh avó, como você é peluda!"
"É melhor para me manter quente, minha filha!"
"Oh avó, que as unhas grandes você tem!"
"É melhor para me coçar, minha filha!"
"Oh avó, que ombros grandes você tem!"
"É melhor para levar a lenha, minha filha!"
"Oh vovó, que orelhas grandes você tem!"
"É melhor para ouvir você, minha filha!"
"Oh avó, que narinas grandes você tem!"
"É melhor cheirar meu tabaco, minha filha!"
"Oh avó, que boca grande você tem!"
"É melhor para comer você, minha filha!"
"Oh avó, eu tô apertada. Deixe-me ir lá fora."
"Faz no peniquinho, filha!"
"Oh não, avó, eu quero ir para fora."
"Tudo bem, mas faça isso rápido."
O lobisomem prende uma corda de lã para o pé dela e deixa ela ir para fora. Quando a menina estava lá fora, ela amarrou a ponta da corda a uma árvore de ameixa no pátio. O lobisomem ficou impaciente e disse:
"Você está demorando aí fora."
Quando ele percebeu que ninguém estava respondendo, ele pulou da cama e viu que a menina havia escapado. Ele a seguiu, mas chegou em sua casa apenas no momento em que ela entrou.


   Nessa história de 1952, que está mais próxima da versão dos irmãos Grimm do que da versão de Perrault, vemos que a história da chapeuzinho evoluiu de forma mais macabra na França, embora não saibamos se a fonte do autor, Delarue, era realmente tradição oral.
  Mesmo que a Chapeuzinho tenha sobrevivido dessa vez, há canibalismo explícito e um streep-tease que foi bastante suprimido nas versões posteriores que nos foram contadas pelos nossos pais, bem como na mídia televisiva.
  Estou deixando com vocês a maior fonte usada nessa pesquisa: O trabalho do antropólogo Jamshid Tehrani, em inglês. Aqui.
  Enfim, é muito bom investigar as origens dos contos folclóricos; pois eles nos revelam as necessidades morais do povo da época. Ler ficção também é estudar história, não é verdade?
   Chega de "historinha de ninar" por hoje, porque eu quero dormir essa noite sem ter que deixar a luz acesa.
   Eu não sei como os pais daquela época tinham coragem de contar essa coisas macabras para os seus filhos. Lobisomem, canibalismo, dedo mindinho...credo.



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