A Aparição na Aldeia Tupi

   Jacimar e eu seguimos até uma espécie de aldeia indígena, no que perguntei, curioso:
  “Vocês não vieram com os portugueses do litoral? Pensei que morassem naquela vila.”
   “Os índios que trabalham para os portugueses moram na vila. Mas formamos uma aldeia nossa perto. É onde o nosso cacique, Jurandir, mora, conversa com o capitão e também negocia com ele. O nosso cacique não confia mais no capitão Teodoro e quer voltar com a tribo pro mar, porque suspeita que a região tem abaçaí.”
  "Pera aí, Jacimar. O que é abaçaí?"
  "Abaçaí é… caraíbas fala demônio. Vós me cê tem que convencer ele a lutar com os abaçaí pros índio não levar o mal com eles pra praia."
  "Mas, como vencer esses abaçaí, Jacimar?"
  "Eles não pode ser morto, mas eles quer alguma coisa. O padre leu uma vez uma parte do livro sagrado dos caraíbas assim, é… 'Oponha-se ao Diabo e ele fugirá.' Abaçaí gosta de coisa fácil, quando abaçaí encontra oposição, abaçaí foge."
  "Você está dizendo para atrapalhar os planos do abaçaí, para ele ir procurar um outro lugar mais fácil."
  "Se os índio mostrarem que são medrosos e fracos, fugindo, abaçaí vai achar eles fácil. Índios tem que mostrar coragem, mostrar que é difícil, pra depois ir embora, sem o risco de ser seguido pelos abaçaí."
  "Estou entendo sua lógica, Jacimar. Mas, no caso, temos investigar o abaçaí, seguir ele, descobrir o que ele quer, e frustrá-lo."
  "É isso que vós me cê tem que falar pra cacique Jurandir. Cacique vai ouvir porque eu vi vós me cê falar sem medo com gente poderosa. Vós me cê é baquara."
   Chegamos até a aldeia indígena. E era linda, Apolo! Era cercada por troncos fincados na terra e dentro tinha seis ocas, construídas nas laterais, fazendo a aldeia ter um formato redondo. Das ocas, duas pareciam ser diferentes, as outras quatro eram as habitações, grandes ocas comunitárias. No centro, imagino, era uma espécie de praça pública, onde se realizavam eventos. 


 
   Eu fui chegando, e recebendo os olhares curiosos dos índios. Claramente eu não era índio, mas também não era caraíba, porque não sou europeu, sou de cor mais escura. A mão de obra dos portugueses da região era indígena, portanto, talvez ele nunca tinham visto alguém como eu.
  “O murumuxaua Jurandir já foi avisado da nossa chegada. Eles me conhecem, não se preocupe. Deixa eu falar primeiro."  
   "Muru... como é que é? Você tinha falado que ele era cacique. "
  "Cacique é como os caraíbas chamam. Eu falo português com você, não tupi. Em tupi é murumuxaua."


  É verdade, Daren, Cacique é o chefe das tribos aruaques. Foi a primeira tribo que os europeus tiveram contato e o nome pegou entre os portugueses. Eu estranhei quando a Jacimar usou o termo “cacique”, cheguei a pensar tudo não passou de um delírio seu. Mas isso corrobora bastante a veracidade de sua história. Significa que você foi mesmo para o passado. Não foi um sonho em definitivo.

   Quisera eu que fosse apenas um delírio, um pesadelo. Mas foi tudo real, minha condenação é real! E logo verei o meu carrasco aparecer como um canino infernal. Mas não antes de revelar a minha história; para que os segredos sórdidos que eu desvendei em minha aventura não morram comigo.

   O… murumu… o cacique Jurandir ficou parado nos encarando, enquanto íamos até ele. Parecia alguém bastante sapiente. Sua feição era séria mas não mal-humorada. Usando um belo cocar de penas azuis e vermelhas, parecia que o próprio fogo enfeitava sua cabeça. O que fazia eu me sentir bem-vindo mas com temor e respeito pela autoridade da tribo.
   Jacimar falou com ele em tupi e depois me revelava o que estava dizendo. Obviamente, ela atuaria como intérprete.
  "Eu disse ao murumuxaua que você tem uma mensagem importante. Ele respondeu que está disposto a te ouvir, mas toma cuidado com o que fala, eu vou falar em tupi com ele mas ele sabe um pouco de português."
   Foi então que eu me toquei que poderia ter preparado um discurso enquanto vinha para a tribo. Tive que improvisar, embora um esboço, o que Jacimar desejava que eu falasse, já havia sido naturalmente criado na minha interação com ela.
  Falei em alto som, embora fosse em um idioma praticamente desconhecido a eles, a convicção e os sentimentos são uma linguagem verbal universal:
   “É notável que esta região está infestada com o mal. E muito sabiamente o senhor decidiu pela volta de sua tribo ao seu lar original, na praia. Mas o abaçaí dessa região entenderá que os tupis estão fugindo dele; que são fáceis. O abaçaí irá perseguir vocês e seguirá com os índios até o mar. Antes de voltar, os índios precisam mostrar ao abaçaí que são um povo corajoso, forte. O abaçaí gosta de facilidade e não seguirá os índios se os índios o frustrarem. Eu e Jacimar pretendemos frustrar o abaçaí e convidamos outros índios para se juntarem a nós, visto que o benefício mútuo é claro.”
   Jurandir pondera, conversa com o curandeiro e faz uma pergunta:
  "O murumuxua perguntou porque você persegue o abaçaí." Jacimar traduz.
   A pergunta dele me pegou de surpresa. Como eu poderia dar uma resposta honesta? Ou que mentira colaria? Mas tinha que responder algo.
  "Um guardião da floresta me disse que eu deveria perseguir o abaçaí."
   O curandeiro da tribo cochicha algo no ouvido do cacique. Então o cacique fala algo.
  "O murumuxaua diz que seu curandeiro viu o Caipora rondando a aldeia numa noite recente. Eles vão deixar você pra fora essa noite, o curandeiro vai rezar para o Caipora e vigiar de longe. Se o Caipora aparecer pra você saberão que está falando a verdade."
   Nessa hora, senti que me dei muito mal. Vou ficar pra fora da aldeia, de noite, esperando algum “Caipora” aparecer. Mas em vista de toda a bizarrice desses últimos dias não duvidaria nem do Caipora mais. Naquelas circunstâncias estranhas, fazia muito sentido que algum ente fantástico aparecesse mesmo nas redondezas daquela aldeia.
  Fiquei esperando fora da aldeia, no frio e no escuro. O que eu podia fazer? Rezar para o Caipora?
   Me baseando no folclore tive a ideia de assobiar. Na terceira tentativa, o assobio foi respondido com um assobio sinistro, mas lento e mais grave que os meus assobios. Segui o assobio até um tronco caído onde estava sentada uma aparição muito perturbadora:
   A luz da lua revelava um ser magro, esbranquiçado. Nu, também não possuía nenhum tipo de pelo no corpo. O topo de sua cabeça era alto, careca e pontudo, como aqueles crânios alongados. Suas orelhas eram pontudas e seus olhos, embora não irradiassem luz, eram totalmente brancos, quase fluorescentes, notava-se apenas um minúsculo ponto preto em cada um deles, que seria a íris, presumi.
   Eu achava que a essa altura do campeonato nada mais me apavorasse, mas havia uma feiura mística e simétrica naquela entidade que fez meu coração ir até a boca!
   A criatura nada falava, a princípio. Mas seu sorriso maligno parecia passar a mensagem que ele queria transmitir. Parecia dizer: “Você que me chamou, mas talvez possa se arrepender disso.”
   Eu sabia que agora eu me encontrava em um jogo de palavras. Eu percebi estava lidando com alguém de poder e sapiência desconhecidos. Eu notei algo familiar nas feições sádicas daquela abominação. Resolvi dar minha cartada e estudar a reação da criatura ao comentário, ao mesmo tempo tentar mostrar que não estou intimidado… o que era mentira.
  "Vamos parar de rodeios, eu te conheço... . "
  As feições do monstro mudaram de um sorriso sádico para um espanto furioso e sua voz trevosa confirmou minhas suspeitas:
  "E de onde me conhece, criatura desprezível?" O ser se levantou enquanto falava, se aproximou quase num piscar de olhos e me encarou.
   Por fora não vacilei. Por dentro o horror era tanto que eu sabia que se fugir seria muito pior e demonstrar medo seria minha ruína. Tirei força da fraqueza por assim dizer.
  "Vim do futuro e você mesmo me enviou para corrigir uma tentativa de mudar a linha do tempo."
  "Viajar pelo tempo é punido com a morte, como eu te deixei viver? Eu devo te executar agora mesmo pelo seu crime confesso, humano tolo. Vou te torturar lentamente, pra fazer você desejar a morte."
  "Vai executar agora o único que pode deter a sabotagem a fundação de Sorocaba?"
   A criatura se afastou um pouco, olhou para baixo, decepcionado. Ele devia estar louco para me executar sadicamente.
   "Eu enfraqueço quando me aproximo dela e não posso detê-la; então você deve estar dizendo a verdade, eu te enviei. Mas não devo ter te contado sobre ela, a minha irmã oposta. Diga-me como eu apareci pra você no futuro?"
   "Como um grande cão, negro e de olhos vermelhos."
  "Hahaha. Lindo! Como eu aparecia há milhares de anos atrás, em forma do animal mais temível e poderoso. Para todos respeitarem minha supremacia no cosmos. E com que poder te enviei para essa época? "
  "O poder é meu, no caso."
  "Hum. Você deve ter passeado pelo tempo, e eu te condenei mas não antes aproveitar o seu raro poder. Eu ainda terei o gosto de te matar, mas daqui a algumas centenas de anos ainda. Que pena!"
  "Há alguma informação que você saiba que poderia me ajudar a cumprir a missão?"
  "Ela tem adoradores, que agem por ela. Ela, em si, fica oculta, no controle da situação, agindo só quando necessário. Ela também tem que se manifestar materialmente para interagir no mundo material, mas suas escolhas são inusitadas. Você deve ser perceptivo para encontrá-la. Encontre-a, enfraqueça-a, para que o equilíbrio de poder penda para o meu lado. Assim poderei me aproximar dela e a minha presença enfraquecerá ela, ao invés do contrário."
   "Porque Sorocaba?"
  "Porque um dia eu serei o governante da Terra inteira. Para propagar a minha lei, a minha ordem, um povo não pode estar dividido. Eu começarei com uma nação que me seguirá, Spenta Mainiyu, que será um império imbatível e tomará toda a Terra.
   A melhor área da Terra para esse começo é o trópico americano. Desde Medelin, na Colombia até La Paz, na Bolívia, e Trujilo, no Peru. E desde Cayenne, na Guiana Francesa, até Sorocaba, no Brasil. Esse cinturão tropical, rico em recursos, em riquezas é o lugar perfeito para a nação Spenta Mainiyu, um povo que me seguirá, como um deus e governante. Enviarei meu priorado para propagar a palavra e tomar os governos, será uma nação fundamentalista, forte e as regras serão sagradas! Sorocaba será transformada em uma fortaleza, por isso ela quer sabotá-la. Para ela a divisão é caótica, fomentadora de guerras, de bagunça. Eu sou o mocinho aqui, entende Daren? E unirei este planeta. E toda a raça humana será feliz debaixo da minha proteção.
   Felizes desde que obedeçam cada uma das 12 376 regras que eu estabelecerei; como não roubar, não bater nos outros, não falar em voz alta, não comer porcaria, só estudar aquilo que eu determinar para cada um dos cidadãos individualmente e outras regras necessárias para que o mundo tenha ordem, é claro.
   Ela quer o mundo caótico, liberdade desenfreada, sem nenhuma regra, anarquia. Hãã! Que asqueroso um mundo assim! Para quê dar liberdade para os humanos, se eles nem saberiam o que fazer com ela? Ficariam procurando algum líder para dizê-las o que fazer! Liberdade é uma ilusão Daren, vai por mim."
   O que dizer diante desse debate acirrado? Diante da opinião de duas entidades obcecadas? O que seria melhor? Um mundo sem cidades, sem leis, sem ordem? Ou mundo dominado por um impositor de regras? Quem é o mocinho? Tem mocinho nessa história?
   O que eu sei é que o mais próximo do “normal” nesse momento é preservar a criação das cidades e impedir Arimane. A ameaça de Arimane é precoce, o tempo de deter Ahura-Mazda ainda não chegou. 



<< Parte Anterior                                                    Próxima Parte >>

Nenhum comentário:

Fernando Vrech. Imagens de tema por andynwt. Tecnologia do Blogger.