Escrevendo um Livro de Mistério



   Quando você faz uma faculdade de letras, você aprende muito conhecimento técnico sobre escrever ficção. Academicamente falando, terror, ficção científica, policial e afins, são todos considerados como estando dentro do gênero Romance. Em outras palavras você aprende a escrever um romance.
   Porém, há muito pouco conhecimento técnico específico para se escrever uma boa história de suspense, terror, mistério, policial - que tal chamarmos todos de "mistério"? ... enfim, histórias escritas com todo o carinho especialmente para apavorar o leitor!
Então eu resolvi escrever esse artigo, que traz o conhecimento acadêmico de letras, mas com um viés para o mistério. Escrito para o leitor que quer aprender o fundamental para se escrever mistério. Claro que depois, com a prática, você irá criar sua própria fórmula, mas ela estará baseada no que vamos considerar aqui, ok?
   Literatura de mistério surgiu do gênero romance. Daria para escrever mistério em outros gêneros? Como o realismo? Claro, mas, uma vez que quase sempre um mistério envolve passar medo para o leitor, o romantismo faz isso de forma mais eficiente, porque permite à narração um envolvimento com os medos das personagem, tornando o suspense mais crível para o leitor. Não é a toa que as histórias de terror mais primordiais foram escritas por romancistas como Mary Shelley e Edgar Alan Poe.

 O que é um Romance, afinal?

   Se você deseja escrever uma história de mistério, é provável que desejará escolher escrever um romance. Um romance não é, exatamente, uma história de amor. É uma história onde as personagens são retratadas de forma idealizada, heróis, virgens puras... . O autor mostra sua visão pessoal do mundo, sem se basear em movimentos científicos, como fazem os autores realistas. A história é sentimental, descrevendo os sentimentos das personagens e muitas vezes a voz narrativa se envolve com as personagens, compadecendo-se de seus dramas e regozijando-se de suas conquistas. Por isso é muitas vezes generalizado a uma história de amor, mas nós sabemos que amor não é o único sentimento que existe, não é.... Porque também temos... medo!
   Aliás, uma história de amor também pode ser uma história de terror. Pense naqueles romances antigos, onde o vilão, de capa e bengala, persegue a donzela e a aterroriza; o vilão faz isso, muitas vezes, por amor, um amor obcecado, psicótico. Percebem como o romance favorece a literatura de mistério?

A importância do Planejamento.

   Quando vem a inspiração, já pegamos logo o papel e vamos escrevendo, escrevendo, escrevendo... Ótimo! Mas isso se chama rascunho. Se você quer mesmo emocionar o seu leitor, precisa elaborar uma estratégia, planejar. 
   Muitos fazem isso naturalmente, talvez por talento, mas, mesmo mentalmente, é necessário fazer escolhas narrativas, montar uma fórmula. Escrever é uma magia e o papel é o caldeirão da bruxa! (E a bruxa é você, rs rs rs) Faça escolhas harmoniosas, para que se complementem.
   A primeira escolha é o gênero principal do seu livro. Convém ter em mente um rascunho primeiro. Um esboço da história e um desenvolvimento básico das personagem. Daí você precisa decidir como você quer mostrar essa história: Quer fazer um estudo mais técnico do eventos do seu livro, influenciado por teorias científicas, fazer uma crítica social? Escolha realismo. Quer mostrar a história com sentimentalismo, descrevendo as emoções das personagens e suas complicações? Escolha romance. 
   Depois de escolher o gênero principal, agora você pode já começar a desenvolver os elementos de sua história, sem se preocupar com o teor dela, o que eu recomendo. Ou você pode já decidir se sua história vai ser terror, policial, suspense, etc. Se começar a escrever, no decorrer de sua escrita, a história vai incorporando características de vários gêneros e acaba se definido naturalmente.
   Eu considerarei aqui o romance, supondo que seja essa sua escolha. Eu poderei fazer um artigo futuro sobre realismo, no caso, como não é minha especialidade, aprenderemos juntos. Mas nesse artigo vamos aprender a escrever um romance, porque é mais o fácil quando se quer escrever gêneros de mistério.
   Agora, o próximo passo é escolher, entre os elementos de um romance, a tipologia de sua história, ou seja, como você quer contar a sua história.




Os elementos de um romance. 

   Os elementos de um romance são os componente da sua fórmula. A saber, a trama, a narração, os personagens, o tempo e o espaço. O segredo do sucesso da sua história é a combinação eficaz desses elementos.

   A trama deve ter o que chamamos tecnicamente de verossimilhança. Isso significa que sua trama não pode ter o que chamamos, agora informalmente, de "furos". É por isso que se chama trama, ou rede, tudo deve estar interligado, deve haver coerência. Ser verossímil não significa ser compatível com a realidade. Você pode inventar o que quiser em sua história e não precisa ser possível na realidade; mas as ações das personagens devem ser coerentes com as capacidades deles, com a personalidade deles. Mas você deve convencer o leitor de que aquela história, embora fictícia, seria possível de acontecer. Você não pode, por exemplo, criar um personagem que nunca viu uma espada e depois dar uma espada para ele e o personagem de repente começar a fazer malabarismo com a espada e derrota seus inimigos; o leitor não vai "engolir" essa proposta. As motivações das personagem também deve ser explicadas. Enfim, pense que há um chato do seu lado, tentando provar que sua história é irrealista, buscando incoerências no enredo; tente não dar argumentos para esse chato.
   A trama também tem os seus próprios elementos, que são recomendáveis, pela técnica, para que sua história seja uma leitura satisfatória. Você pode inovar e tentar criar sua história sem essas recomendações, nada te impede, mas terá que encontrar outros recursos para que sua história não enjoe o leitor.
   Uma trama deve ter o "conflito", que é um problema para ser resolvido, uma rusga entre pessoas, clãs, famílias, países, um fenômeno desconhecido, um evento inesperado etc, podendo haver mais de um. Também deve ter o "desenvolvimento", é hora de contar como se formou o conflito, mesmo que já tenha acontecido a muito tempo, o leitor irá querer saber. Depois de explicar o conflito, você precisa decidir o que as personagens irão fazer diante desse conflito; é um elemento esquecido no meio acadêmico, sendo colocada junto com o desenvolvimento, mas não é a mesma coisa; eu gosto de chamar de "decolagem", quando as personagens decidem reagir a esse conflito, o detetive encontra a primeira pista, o herói começa a planejar... é a decolagem, que vai elevando o leitor ao próximo elemento. Depois temos o "clímax", que é o evento principal do livro, a grande batalha, quando um dos lados do conflito sobrepuja o outro, pense que seu livro é a Sessão da Tarde e terminou o último comercial. Por fim temos os "desfecho", uma aterrissagem, por assim dizer, onde você conta o que as personagens irão fazer agora: se amizades serão separadas ou continuarão, se o herói vai embora, se ele fica, se se casa, etc. Também é hora de fechar conflitos secundários. 
   Um último elemento só deve ser usado se você deseja criar uma continuação, ele se chama "gancho". Deixe um fio solto na trama, algo sem solução, faça seus leitores ansiarem por mais uma história com as personagens que você criou. Você pode colocar mais de um gancho e não precisa ser exatamente no fim.

   A narração é outra escolha importante. Quem vai contar essa história para o leitor? Um personagem? Você? Como ele fica sabendo dos fatos? É testemunha ocular? Um investigador? Perceba que o narrador também é uma personagem e deve ser construída. Mesmo que seja você mesmo, você deve construir como você ficou sabendo dos "fatos" para a história ficar mais verossímil.
   Há vários tipos de narradores. Pode ser "onisciente", que sabe de tudo, de eventos que ninguém na história vê, dos pensamentos das personagens; ou pode ser uma "testemunha", que sabe apenas as informações que coletou, nesse caso, convém construir para o narrador uma personalidade, uma função como jornalista, investigador, curioso etc. Ele pode ser "intruso", que opina sobre a história, critica as personagens, ou pode ser "neutro", descrevendo os eventos de forma fria. Pode ser um narrador "autor", com a voz narrativa sendo do próprio autor, ou um narrador "ficcional". Ele pode ser "personagem", uma personagem presente na história, contando em primeira pessoa, ou pode ser apenas um narrador "extra-dimensional", que não faz parte do universo da história, contando na terceira pessoa. Pode ser um narrador "distante", que conta os eventos estando longe da cena ou pode ser "próximo", conta a história em proximidade com as personagens, descrevendo suas emoções e reações. Pode também ser um narrador "historiador", que descreve os eventos depois que eles ocorreram ou pode ser um narrador "locutor", que narra os eventos em tempo real. Você pode também combinar vários tipos de narrador, um narrador onisciente intruso, mas que também é personagem; um narrador extra-dimensional neutro historiador, etc. E pode ter mais de um narrador em sua história, mudando a voz narrativa. A voz narrativa é simplesmente a linguagem que o narrador usa, que reflete sua construção pelo autor.

   Os personagens também deve ser construídos de forma que se complementem na história. Há os protagonistas, que são os personagens centrais, e pode haver mais de um; há os antagonistas, que estão em oposição aos personagens centrais, e nem sempre o protagonista é o herói e o antagonista é o vilão, depende do ponto de vista em que história vai ser apresentada. Há também personagens secundários, que ajudam os centrais. 
   Cada personagem deve ter uma função na trama. Um personagem pode ser o "conselheiro", que ouve os problemas das personagens e os orienta; pode haver um "mago", que usa seus conhecimentos para manipular o ambiente ao seu favor; também há típico "herói", que é virtuoso e ousado; o "anti-herói" que não é virtuoso mas mesmo assim acaba fazendo algo benéfico sem ter intenção; o famoso "vilão" e muitas centenas de tipos. Mas perceba que cada um deles pode receber uma denominação geral, segundo as suas funções na história. Tais personagens deve contribuir para a história funcionar. É importante também evitar construir personagens genéricos, mas dar características únicas, como traços de personalidade, características, defeitos e qualidades, tanto físicos quanto psíquicos. 

   Quando ocorre a história? É contemporânea? histórica? A sua história cobre um período de dias? Anos? Séculos? Ou 24 horas? A época e a duração da história são escolhas dentro do elemento tempo. A ordem dos eventos também é uma escolha referente ao tempo. Você pode contar a história de forma cronológica ou escolher outra ordem: começar pelo fim e ir explicando como a história chegou àquele momento. Se você escolher contar a história em ordem não cronológica, pode misturar os elementos da trama (explicados acima) mas busque ainda criar um clímax no final do livro.


   Por último, temos o espaço, que é mais importante do que parece, principalmente para histórias de mistério. Não é simplesmente escolher a localidade da história, mas criar um ambiente que contribua para causar no leitor a emoção que você pretende. O universo está nas suas mãos. O protagonista está perdido? Faça uma tempestade cair em cima dele, coloque um pequeno cemitério por perto. O protagonista está apaixonado? Faça-o caminhar por um campo verde, em um dia ensolarado. Vá criando um clima que combine com o tom de sua história, ou de um momento de sua história.



Criando um mistério

   Pense em algo que desafie o senso comum: uma morte impossível, um evento bizarro, um indício de companhia onde o protagonista pensava estar sozinho... . Deixe o seu mistério implícito no começo, deixe o seu protagonista investigar, aos poucos; escolha quando escancarar tudo na cara do leitor, ou escolha deixar tudo implícito até o fim. Escancare o mistério e depois mostre que é só a ponta do iceberg. Decida se o mistério será resolvido ou se o protagonista apenas sobrevive ao mistério, ou não sobrevive.
   Enfim, há inúmeras fórmulas para criar um clima de mistério. O importante é usar o desconhecido.

Criando medo

   Pense no que te causaria mais medo e assuste seus leitores com seus próprios medos. Se há um medo que você entende é aquele que você mesmo tem. Se tem mesmo do escuro, use o escuro como o elemento principal na sua história.
   Também há medos universais, que todo mundo, mesmo não admitindo tem medo. Exemplos: 

   ETs. Porque são totalmente desconhecidos, exóticos, de intenções não conhecidas.
   Loucura. A insanidade gera imprevisibilidade. Você não imagina como um louco pode reagir.
   Obsessão. Uma pessoa que não dá espaço, te vigia, não te permite ter privacidade, é assustador!
   Sobrenatural. Um pouquinho pior do que ETs, muitos mais desconhecidos, além da física, metafísicos. Embora leitores mais céticos tendam a se assustar mais com ETs, por não acreditarem no sobrenatural.
   Natureza. Dá pra criar um clima de medo com os elementos naturais. O medo está quando descobrimos que a natureza não nos é conhecida como pensávamos. Nos tira de uma zona de conforto e nos faz deparamo-nos com a fatalidade da natureza. Uma longa tempestade, que não pára por dias, um animal doméstico que fica psicótico, uma floresta labiríntica. Já dá pra criar um ótimo terror só usando a natureza. É importante, no caso, usar um contra-senso, mostrar que a natureza pode ser diferente do que esperamos.



   Por fim, é isso galera. Tudo o que eu sei sobre escrever histórias de mistérios. Em parte técnica e em parte prática, com um viés para o terror e o suspense. Futuramente também posso explicar com um viés mais voltado para a fantasia e a ficção científica. Estou criando um "gancho" nesse artigo, que tal?

2 comentários:

  1. Fernando,

    parabéns pelo texto! Admirável sua disposição para escrever sobre assunto tão extenso e complexo.

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    1. Valeu! Quanto mais pessoas aprenderem mais histórias deliciosas aparecerão...

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Fernando Vrech. Imagens de tema por andynwt. Tecnologia do Blogger.