O Pedaço da Noite


 
Em um dos últimos refúgios da Mata-Atlântica, uma onça fêmea se deita na segurança do capim alto; mas ela não vai descansar. A onça está dando à luz e o seu filhote é uma rara onça-negra.

Na região de Bertioga, SP, ocorre a chamada mata de restinga, um tipo de vegetação que varia entre áreas abertas de capinzal denso e mata fechadas, que ocorrem especialmente nas regiões de mata ciliar (que margeia os rios). É nesse refúgio ainda afastado das mãos humanas que a nossa pequena onça negra, um macho, toma sua primeira refeição direto de sua mãe, como todo o mamífero.

Ele ainda está cego, e aquelas temidas presas felinas ainda nem nasceram. Mas após um mês de cuidados amorosos de sua mãe, ele já é uma oncinha completa, além de arteira e curiosa.

A sua mãe cuida dele sozinha já que os machos são pais ausentes, com um grande território para defender, não se preocupam com o desenvolvimento de seus filhotes.

Durante cerca de seis meses ele aprende a caçar com sua mãe e passando menos de dois anos, como todo o filhote de onça, ele já está pronto para deixar o lar materno.

Mas essa nossa onça tem problemas inusitados para enfrentar durante sua vida. Seu habitat é reduzido e está sendo compartilhado com áreas rurais e urbanas. E os territórios de outros machos são extensos, abrangendo vários territórios menores das fêmeas com as quais eles costumam cruzar.

Quando adultos, jovens machos podem se mover mais de 30 quilômetros de sua região natal em busca de um novo território.

A praia não é adequada para onças, então os novos territórios de caça são de difícil acesso. O rio Itapanhaú desce a serra de forma violenta até desembocar em outro rio, mais calmo e sinuoso. Mas no sopé da serra, o rio ainda corre violento e, em muitos casos, apesar disso, oferece um caminho mais fácil para novas regiões de mata.

Em uma pedra plana, que, enfrentando a violência do rio, insiste em ficar na margem, uma sombra silenciosa, como um pedaço da noite em pleno dia, move-se para cima dela, e calcula o desafio.

A jovem onça percebeu que o aconchegante território de sua mãe já não lhe basta. O jovem macho precisa encontrar o seu proprio reino. Ele olha para a corredeira e suspira para criar coragem.

Inicialmente, a pantera sobe a serra margeando a corredeira, pulando pedra após pedra ou subindo algum resquício de trilha abandonada naquela região selvagem. Mas a certa altura ele se depara com uma rocha demasiada grande para as suas habilidades; do outro lado do rio a subida parece mais suave. Ele não pode mais adiar o problema, ele terá que cruzar a corredeira.

A onça não pensa duas vezes, porque sabe que o segundo pensamento será de desistência. A morte é certa caso ela se deixe levar pela corredeira, lá embaixo seus ossos seriam quebrados pela fúria de uma cachoeira.
O salto da onça avança pelo ar o máximo de distância segura, é o bastante para cair atrás de uma rocha, onde a água se acalma. Ainda com muita dificuldade, a onça negra nada até a outra margem antes da correnteza a derrubar na cachoeira. Agora ela manca, seu ombro bateu na rocha; um pequeno hematoma é uma barganha paga com alegria. Agora o caminho serra acima é uma subida mais suave.

Durante as caçadas com a sua mãe, esta onça em especial notou que as caçadas em que participou durante o dia tiveram menos sucesso. Sua pelagem negra dificultava a camuflagem. Mas com o tempo ela descobriu a sua vantagem: de noite ela é quase invisível!

Onças são predadores completos. O horário para a caça é o que for mais conveniente. Para a pantera da nossa história, caçadas noturnas são as mais recompensadoras, principalmente porque é o horário de atividade do prato mais saboroso do menu felino da mata atlântica: a anta. Mesmo assim, guaxinins e juparás, que agitam as noites nas redondezas desta serra devem ficar atentos. 
Naquela noite, a pantera dormiu saciada de carne; então se levantou e continuou a jornada

Após subir a serra, vitoriosa, a onça não tem tempo de comemorar. De repente, as árvores acabam! E o sol forte do meio dia, em uma estranha e poeirenta área aberta, revela que a pelagem da onça nunca fora preta, ainda se podia ver suas pintas sobre um fundo de pelagem escura.

A onça ficou surpresa com o fim das árvores. Ela olha para trás, sem entender a paisagem estranha à sua frente, algo que ela nunca tinha visto. Troncos parecem nascer do solo mas deles nascem farpas ao invés de folhas. E inúmeros animais suculentos ficam de bobeira pastando a grama rasteira.

Esta onça não é boba, sua mãe a ensinou bem a arte da discrição. O ambiente novo não propicia camuflagem e essa pantera não faz idéia a que ela ficará tão exposta. Ela retrocede para a mata e espera pela noite.

Quando anoitece, ela quer apenas percorrer logo este ambiente desnorteador e confuso. Ela não ataca o gado, não ataca os moradores, ela apenas tenta passar despercebida pelas fazendas desta área rural.

Mas no final da noite, após horas de marcha, a pantera precisa de uma refeição. Então ela se aproxima de uma daquelas estranhas presas gordas para uma emboscada. Mas um bicho diferente aparece neste momento. É um animal atento e parece proteger o território. Logo a onça percebe que esse bicho pode matar de longe, portando um estranho pau que ruge.

No primeiro estrondo, a veloz Sombra da Noite já se encontra a metros dali. Agora ela está desesperada porque notou que este território não está livre e é muito bem guardado.

Mas é na aurora, onde os pesadelos deveriam acabar, que a onça encontra o verdadeiro inferno. Uma selva de pedra, lotada de animais metálicos velozes e zunzunantes, lotada de macacos bípedes, que parecem ter mais medo da onça do que a onça deles.

Desorientada e arfando em desespero, a imponente Sombra é atingida por um animal metálico. A onça, fatalmente ferida, agora suspira para fazer mais uma jornada, a jornada final, a última jornada.

Mas não é tempo ainda...

dentro de uma daquelas estranhas árvores de pedra, onde desabrocham do chão macias e confortáveis plantas brancas como o cetim, a onça abre os olhos. A jovem onça nunca esteve tão perto daquele animal perigosíssimo, que pode matar de longe.

Mas a pantera descobre um outro lado desse animal bípede; um amor quase ao nível daquele amor que a sua mãe lhe demonstrou na sua infância. O imponente felino recebe o afago de um enfermeiro enquanto um veterinário cuida de suas feridas; é o lado deste animal estranho que os faz serem chamados de humanos. E a pantera assim julgou a criatura como sendo de difícil compreensão, ora com o pau que ruge e ora com o espinho que cura.

A pantera é levada para uma floresta próxima. Normalmente, uma onça macho precisa derrotar outro macho para conquistar território. Mas depois de tanta luta, essa fera merece um desconto, esta floresta ainda não foi reclamada por nenhum macho. Aqui ela pode reinar suprema.

Anos se passaram e uma velha onça fêmea, serra abaixo, já cansada, parece desistir. Mas a sua memória ainda é boa. Ela não deixa de reconhecer aquele Pedaço de Noite que ela criou. Com animo renovado, a velha onça se levanta para saudar o seu filho.

Diferente das fêmeas, que buscam se manter por perto, machos de onça dificilmente voltam para rever suas mães. Mas esta onça é especial; ela precisou ser mais forte que o normal e precisou se lembrar bem das lições que recebeu. Essa pantera jamais se esqueceria de sua mãe.

É claro que a pantera não pode mais ficar ali, quando matar a saudade ela voltará para os seus longínquos domínios, o seu reino subindo a serra.

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