A Batalha Final e Quebrando Princípios.
A Batalha Final
Bom, com Iuna rastreando, feito uma onça, o caminho percorrido pelo capitão Teodoro e seu prisioneiro; e com Kaíque tendo descoberto a direção para uma grande e suspeita árvore guatambu, era certo que chegaríamos ao cerne do problema e eu cumpriria minha missão, para ser executado com clemência, como Ahura-Mazda diz, como se fosse alguma “recompensa.”
Agora a área era mais aberta, parecido ao cerrado, que não é incomum na mata nativa de Sorocaba. Tudo muito verde ainda e cada tom de verde nos era uma ameaça, pois parecia que Arimane tinha se manifestado em uma floresta inteira! Embora era evidente que seu poder sobre a floresta não era ilimitado e teria diminuído, segundo o relato de Jacimar.
Podíamos esperar de tudo, tudo na floresta era… caótico. Embora uma criatura devorasse a outra, sem nenhuma cadeia alimentar perceptível, éramos certamente uma parte disputada do menu. Taynara colhia mamonas pelo caminho e preparava uma mistura aquosa que armazenava em sua cuia.
Chegamos em uma espécie de “estrada” novamente e o guatambu gigantesco já estava à vista. Mas essa estrada parecia ter sido formada “naturalmente”; dava para ver que a grama era muita rala no meio da estrada, mas não era cortada, as folhinhas da grama eram todas jovens, amareladas e muito pequenas por toda a extensão da estrada. Em linha reta até o guatambu, nenhuma árvore nascia, somente algumas árvores nas bordas da estrada. Chegamos nessa estrada já perto do anoitecer e passamos a percorrê-la.
Flagramos a cena que se passava nesse cerne bizarro. O guatambu, com seu tronco gigante iluminado em tons flamejantes por uma pira montada dentro de um vaso adornado. Ante a pira, uma rocha aplanada onde estava deitado o prisioneiro ainda consciente. Em volta desse altar de sacrifício profano, raízes revolventes, sedentas por sangue. Ante ao prisioneiro, o capitão Teodoro, ajoelhado, ajudando devotadamente as raízes, já fracas, a realizarem muitos cortes na carne do prisioneiro.
Olhei para Iuna e ela compreendeu meu pedido. Ela avançou sorrateira enquanto Jacimar esticava seu arco oferecendo cobertura.
Iuna rastejava até o local da profanidade. Ela avançou até o capitão para cortar sua garganta, mas o cipó que ela trazia enrolado em seu braço adquiriu movimentos e a traiu, a levando, serpentina, para o movente emaranhado vegetal. Mas não antes dela jogar sua ponta de flecha nas amarras do prisioneiro, e conseguir soltar sua mão.
Iuna sempre foi perfeitamente sorrateira mas, quando foi finalmente notada, nos deu a chance de atacarmos o inimigo distraído. Não tive mais notícias de Iuna.
Enquanto avançávamos, o prisioneiro tentava se livrar das raízes, cada vez mais fortes, e engajava uma luta com o capitão Teodoro que, pela proximidade do duelo, não podia erguer sua espada. Ubiratã terminou a luta dos dois rachando a cabeça do capitão.
Mas vencer o capitão fora uma vitória insignificante. Agora éramos apenas sacos de sangue para aquelas raízes sedentas! Arimane estava certamente feliz com um buffet inesperado e fortificante.
Mais forte, ela agora formava uma tropa animal, que, um a um, aparecia por detrás dela. Onças, panteras, bugios e as raízes, ofídicas, avançavam sobre nós.
Então aquela pequena chama infantil, que nos acompanhava à distância, cruza o campo de batalha, em um vulto, formando uma muralha de fogo que nos separava das agora hesitantes aberrações da natureza. Jacimar apontava suas flechas para o fogo e atacava o guatambu com flechas chamejantes. Taynara desarrolhou sua cuia, encheu a boca com aquela substância que preparara e cuspia no fogo, cobrindo de chamas as poucas criaturas que ousavam chegar perto da muralha de fogo. Sim! Era a tal água-de-fogo que Taynara afirmava.
Embora soubéssemos que devíamos lutar, parece que estávamos mais preocupados em fugir daquela abominável blasfêmia natural.
Então, estrondos profundos, em tom madeira, ecoavam pela floresta. O Guatambu começou a tombar acompanhado de uma risada eufórica e de um agradecimento perverso:
“Ahahahaha!! Você enfraqueceu ela!! Vejo você nos seus últimos dias Daren!!!!”
Nos livramos do guatambu mas ainda éramos perseguidos pelos animais enlouquecidos, alguns estavam em chamas e ainda assim nos perseguiam. Jararaca parou e começou a falar, enquanto Jacimar traduzia:
“Estou fraco pra correr. Mas Jararaca não morre. Jararaca é morte! Continuem, eles não passarão!”
Jararaca permaneceu parado enquanto as criaturas avançavam. Ele sibilava e fiquei com a impressão que os silvos saíam também das bordas da estrada. Com insistência Jararaca nos convenceu a deixá-lo. Corremos sem olhar para trás mas não deixamos de ouvir os silvos e o choro agudo dos animais.
Já a uma distância segura, exaustos demais para comemorar a vitória perguntamos para o prisioneiro quem ele era.
“Eu? Sou Baltazar Fernandes. Estou grato a vocês pelo resgate.” Era o fundador de Sorocaba, Apolo! O prisioneiro, este tempo todo.
Cumprimentei Ubiratã e Taynara pela campanha memorável. Jacimar me abraça e diz alguma coisa, sorrindo. Mas não pude ouvir mais nada. Eles foram desvanecendo e meu corpo do passado deve ter virado poeira nos braços de Jacimar.
Foi isso que aconteceu, foi assim a última aventura da minha vida. Não nego que foi uma ótima última.
"Eu apreciei a sua história Daren, pude adquirir mais conhecimento sobre as Insanidades."
Cansado, pus as mãos no rosto e suspirei. E Daren não estava mais na mesa comigo quando olhei novamente. Um dia inteiro havia se passado, de lapso, entre a minha conversa com ele e o meu desvio momentâneo de atenção.
Em seu quarto, vi Daren deitado, já sem sinais de vida e o maldito cão sentado ao seu lado. Os acessórios tecno-místicos que Daren criou não estavam nele. O cão olhou para mim, lentamente se virou, passou por mim e se dirigiu a porta de saída mais próxima. Antes de sair ele parou e eu ouvi-o dizer:
“Ehehehe; é uma pena que sentenciei Daren apenas uma vez. Queria tê-lo executado duas vezes!”
O cão deu um sorriso de soslaio e saiu correndo.
Quebrando princípios
Quando pensei um pouco na última declaração de Ahura-Mazda percebi que ele havia me dado uma dica do que fez. Assim que compreendi a declaração do cão fiz uma última tentativa desesperada de trazer Daren de volta.
Digo desesperada porque foi no desespero que ignorei completamente meus princípios solenes. Eu evoquei uma entidade e compactuei com ela. Eu resgatei umas anotações de quando eu fazia experiências profanas nesse porão e trouxe para minha casa mais uma insanidade.
Lúcifer aparece-me pela segunda vez, a horrenda aparição sorria para mim como se me reconhecesse. Se apresentava como uma criatura levemente humana, de capuz, com um rosto de réptil e um brilho cegante no topo de sua cabeça.
“Trazer alguém do passado é desafiar demais Ahura-Mazda até para mim. Uma mensagem ao passado é o máximo que eu posso fazer. Em troca, você será meu servo, propagando ao mundo as suas descobertas profanas. Esse é nosso pacto”. Explicou a aparição.
"Sim, meu mestre". Disse eu com desgosto.
“Como tarefa inicial, de boa-fé, quero que tire de sua gaveta os seus últimos estudos sobre vírus."
Lúcifer se referia a um estudo que eu fiz para tentar descobrir a cura para a raiva, aquela doença de cachorro. Eu precisei acelerar o ciclo de vida do lyssavirus (o vírus da raiva), para poder estudá-lo em ratos. Mas o gato do vizinho invadiu o meu porão e comeu os ratos infectados com o vírus melhorado. Só consegui parar o gato na esquina da rua. Um mendigo morreu pelo gato infectado. Parei a experiência e arquivei os estudos.
"Há muitas pessoas no mundo que se interessariam muito por esse estudo que fizeste. Quero que publique a informação." A insanidade continua.
Em troca, eu entreguei a Lúcifer uma lista de plantas muito específicas que evitam o envelhecimento por induzir o corpo humano a continuar produzindo a enzima telomerase; e também instruções de como usá-las. Lúcifer concordou em enviar a informação para Daren, no Carbonífero.
Imediatamente após aquele ofídico humanoide desaparecer em um clarão, ouço batidas na porta.
Eu atendi um homem que afirmava ser Daren. Suas declarações eram confusas, como se lembrasse remotamente de quem era.
Ao acolhê-lo, eu alimentava a lareira para aquecer o cansado andarilho. O estranho homem me perguntou com a voz falha:
“O que queimas nessa lareira?”
“É só umas besteiras que escrevi sobre o Lyssavirus; não serve para nada.” - respondi.
O misterioso homem tinha algumas rugas, mas ainda lhe restava vigor físico. Seu cansaço parecia resultado de vivência e não de velhice. O homem parecia ter vivido centenas... milhares… milhões de anos.
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