O Arcano Adler


Quinta, vigésima sétima sessão do paciente.

  
Daren, felizmente, não sonhou com o Carbonífero esta noite. Queimamos o livro de geologia e eu administrei um chá para que Daren não sonhasse. A alternativa seria induzi-lo a sonhar com uma época segura mas, no final, foi melhor a decisão de que ele não sonhasse nada mesmo.
   Daren, embora muito apavorado com tudo o que passara, tinha uma curiosidade que, se ele soubesse mais sobre o assunto que a desperta, eu diria que é mórbida.


“Poderia contar como foi sua formação… arcana, doutor Adler?”

“Eu nasci em um vilarejo na Alemanha que ainda mantém as tradições pagãs da mitologia nórdica.”

“Onde fica esse vilarejo, me conte mais doutor, er Apolo!

“Conhece os Alpes Daren?”

“Sim! Os Alpes Suíços”

“Passou perto. Os Alpes incluem, sim os Alpes Suíços mas, na realidade, há uma cordilheira enorme na Europa chamada de Alpes, que se estende por quase toda a Suíça e Áustria, mas também abrange o extremo sul da Alemanha e o Norte da Itália. Bom, o vilarejo onde eu morava ficava na Alemanha, em uma área muito montanhosa e remota, ao norte dos Alpes.”

“Ainda existem crenças antigas nesses lugares? Tipo adoradores de Odin?”

“Algumas vilas muito antigas, preservam as tradições de antepassados muito remotos.”
“Agora quando falamos dos Alpes, Daren, estamos falando de uma área onde muitas culturas se estabeleceram no passado, e todas essas culturas ainda são preservadas nessas vilas remotas.”
“Por exemplo, na idade do Bronze, os Alpes foram habitados pela cultura celta, por um antigo povo celta hoje denominado de Hallstatt pelos historiadores, portanto, é possível encontrarmos lá comunidades de wiccanos, que seguem a religião Wicca.”
“Mas os Alpes também foram habitados, posteriormente por anglo-saxões, ao norte e por romanos ao sul. Os anglo-saxões foram um povo que baseou sua cultura na cultura nórdica, então, sim, poderemos encontrar adoradores de Odin nos Alpes; ou talvez, Woden, como eles o chamam. Já os romanos eram adeptos da religião que hoje chamamos de mitologia romana; portanto, podemos encontrar diversas seitas que se baseiam na adoração deste ou daquele deus romano, como as bruxas da deusa Diana, por exemplo.”
“Há, nos Alpes, ainda hoje, uma grande diversidade de culturas antigas preservadas pelos descendentes de povos antigos. Havendo também inimizades entre as diversas culturas que, para se protegerem umas das outras, bem como da cultura moderna, são exercidas secretamente.”

“Então há muita coisa acontecendo nos Alpes em matéria de choques culturais.”

“Eu não usaria eufemismos. Há muito sangue escorrendo pelos Alpes, por conta de rivalidades culturais. Muitas dessas seitas se tornaram extremistas e intolerantes.”

“Para você compreender melhor minha história, Daren, é importante você saber que eu vim para o Brasil por conta dessa intolerância.”

“Compreendi, meu caro, você fugiu para o Brasil para escapar das guerras culturais.”

“Mas, obviamente, aqui, ou em qualquer outro lugar do mundo, preciso esconder minha origem pagã, para não causar estranheza. E para fugir dos magos profanos. É bom poder falar sobre minha história com alguém, Daren.”

“E está interessante sua história, Odin Hórus Apolo Adler, por favor, continue!”

“A vila em que eu nasci era de cultura nórdica. Se chama Alfrstein. Significa ‘Castelo dos Élfos’, porque diziam que um elfo morou lá em tempos remotos e fundou a vila a partir de seu pequeno castelo.”
 


“Por ser em uma área montanhosa, poucas vezes, eu não via neve para todo o lado. No verão, na maioria das vezes, não nevava muito e eu me lembro o quanto eu ficava feliz nessa época, pois podia vestir roupas mais leves, brincar no sol e me sujar na terra. No resto do ano eu só podia me sujar na neve, hahaha.”
“Eu me lembro que tinha apenas umas seis famílias vivendo na pequena comunidade. Uns eram lenhadores, outros eram ferreiros, outros eram fazendeiros, etc.”
“Embora buscássemos aprender alemão, o primeiro idioma que aprendíamos era o nórdico.”

“Parece um jogo de RPG.”

“Hahaha! Eu praticamente cresci em um RPG!”

“Meu pai era um comerciante. Viajava até as cidades mais prósperas, com sua carroça, e lá vendia os produtos da vila. Algumas vezes vendia madeira para o lenhador, outras vezes vendia a colheita do fazendeiro, ou ferramentas para o ferreiro ou artesanato, etc, qualquer coisa que os aldeões produziam meu pai conseguia vender. E lá mesmo, já comprava provisões para as famílias e coisas que os aldeões pediam, pois, o que os moradores da remota Alfrstein fariam com dinheiro, não é verdade? ”
“Algumas vezes ele ia para Rosenheim ou Kuftein, outras vezes ele ia para Innsbruck, mais próspero, e trazia muitas coisas legais de lá. Mas, quando a coisa apertava, ele se preparava mais e ia para Munique, com uma ou até duas carroças abarrotadas de mercadorias. Ficava mais de um mês fora.”
“Já minha mãe era uma Seidkona: uma entre muitos, muitos tipos de magos. Uma Seidkona era, em certo sentido, uma espécie de psiquiatra da antiga cultura nórdica. Ela ajudava os aldeões a controlar suas energias emotivas. Ela ajudava quem tinha insônia, desânimo e até paixonite. Mas também podia manipular os sentimentos dos outros em auto-defesa, confundindo ou apavorando o agressor.”
“Mas é claro que uma Seidkona, como uma feiticeira, ia muito além de ajudar os emocionalmente desequilibrados. A magia Seidr, como chamávamos, não se resumia apenas ao controle da psiquê. Entre outras práticas mágicas, ela buscava a ajuda de entidades sobrenaturais, como os élfos. Estes váamos de maneira similar aos anjos das culturas modernas. Minha mãe buscava ter contato com o mundo dos elfos, Álfarheim, por meio de um transe induzido por ervas, ou runas desenhadas no chão. Quando usava runas, ela afirmava que podia vê-los e até tocá-los!”
“Todos a amavam e a temiam por seu poder de se conectar com outros mundos da árvore Yggdrasil; que é como imaginávamos o cósmo e suas muitas dimensões.”
“Minha mãe desejava muito manter a tradição da magia Seidr, de nossos ancestrais, então ela me ensinou a magia. E ela fez mais do que me ensinar: me nomeou com nomes de deuses, me benzeu com cantorias de que nunca ouvi falar e me ensinou segredos profundos que até outras Seidkonas não sabiam. Ela usou todos os recursos que conhecia para me tornar o maior Seidmádar, com eram chamados os homens praticantes de Seidr, que alguém já conheceu.”
“Mas, como você já deve ter suspeitado, homens praticantes de Seidr são um tabu na cultura nórdica. Seidmádars eram chamados de ‘ergi’ que, se aproxima de ‘maricas’ no português.”
“Há até a história, na mitologia, de que o próprio Odin teria sido chamado de ergi por Loki quando ele usou a magia Seidr para profetizar.”

“Você sofria bulling das outras crianças.”

“Não tive muito problema com bulling. Quando outras crianças me perseguiam por eu ser aprendiz Seidr, acabavam ficando por dias depressivas, apavoradas e o meu preferido: alucinadas. Na realidade, sofri por não conseguir ter nenhum amigo.”
“Após eu ter deixado a vila, me mudei para o Brasil, e me formei em química. Não contente com apenas uma faculdade, também fiz medicina, biologia e depois psiquiatria.”
“Mas é claro que minha sede insaciável por conhecimento não podia ser satisfeito apenas pela ciência. Aqui nesse porão, pesquisei teoria e prática de dezenas de formas de magia.”
“Aqui, Daren, eu já realizei as experiências mais profanas e imundas, pronunciei o impronunciável, provoquei fenômenos apavorantes e contatei inteligências, insanidades e perversidades que nenhuma fantasia humana conceberia. Tudo para saciar minha sede por conhecimento.”
“Tudo para aprender que só talvez uns dez por cento do conhecimento arcano é utilizável de forma segura. A maior parte da magia mexe com fenômenos e seres tão perversos que mesmo citá-los seria irresponsabilidade da minha parte, que dirá evocá-los novamente.”
“Daren, tomei conhecimento de lugares cósmicos constituídos da mais pura perversidade, que teriam me levado a insanidade não fosse meu preparo em assuntos psíquicos. A realidade que você vê e ouve é um mero arranhão na superfície do cosmos; e as criaturas que você pode observar de forma natural não estão aos pés da inteligência e selvageria daquilo que não te é perceptível.”
“Após muitos anos de experiências, separei o praticável do impraticável e criei uma barreira ética do tipo de magia que considero construtivo, pessoalmente e ambientalmente, exercer. Tenho regras que te juro que preferirei a morte a quebrá-las: Primeiro: nunca usar a necromancia...”

“Porque tentar entrar em contato com os mortos seria tão perigoso? Várias religiões, aceitáveis socialmente, buscam esse contato.”

"Eles sabem realmente com quem eles estão entrando em contato?"

“É difícil ter certeza, os mortos não tem RG.”

“Exato, Daren. Você se certificaria da identidade de qualquer pessoa antes de permiti-la entrar em sua casa, mas com espíritos isso não é possível! Saiba, Daren, existem muitos seres imateriais por aí, de diversas origens, naturezas, dimensões… e eles tem personalidades; alguns são do tipo sarcásticos. Não é prática nem segura a necromancia; uma vez que não é possível saber com quem se está conversando.”
“Outra regra inquebrável: Nunca aceitar poderes em troca de servidão a supostos deuses ou seres. Você pode notar, Daren, que, diferentemente da maioria dos magos, não há nenhum altar nessa sala.”

“Então é assim que magos ganham poderes?”

“Sim. Entrando em contato com seres místicos, deuses ou mesmo demônios, e barganhando poder com eles em troca de suas próprias almas ou servidão. Daren, os magos que barganharam com as próprias almas são muito mais poderosos do que eu!”

"Então o mago realmente poderoso é do mal."

"Um mago corrompido tem pouco poder individual, na realidade. Pois eles não possuem liberdade de decisão, eles se tornam servos de seja lá quem for que eles se vendam. Possuem um imenso poder mas muito pouco podem fazer por vontade própria, são possuídos pelo poder que tentaram possuir."

“Aliás, a última regra é nunca mexer com coisas que são maiores do que eu. Não vale a pena tentar controlar aquilo que pode te controlar, entende?”

“Por causa dessas regras, eu abandonei boa parte do que minha mãe me ensinou e pratico Seidr com muito pouca frequência.

“Mas porque você está me contando tudo isso, doutor?”

“Para que você tome conhecimento do quão poderosa e perigosa é a magia. Você pode ganhar inimigos de uma horripilância e poder impensáveis por simplesmente usar o fenômeno errado, no lugar errado ou na hora errada. E a quarta dimensão, que você pode transcender, é um agravante porque aumenta exponencialmente as chances de você acabar esbarrando com alguma existência sombria escondida nas brumas do tempo.”
“Quer você queira controlar sua habilidade, quer você queira eliminá-la eu sou o único que pode te ajudar e você só terá a minha ajuda se você adotar as minhas regras, de acordo?”

“Nada de espiritismo, sem pacto com o Capiroto e nunca mexer com quem pode me controlar...”
“...Totalmente de acordo, doutor. Que tal agora me tirar logo desse pesadelo?”



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