A Sede




   Nos séculos XV e XVI, os navios eram o meio de transporte mais importante do mundo. Na época, os oceanos fervilhavam de navios, principalmente navios espanhóis e portugueses.
   Mas o principal objetivo não era bélico, e sim algo mais dourado e reluzente do que os metais pouco nobres que compunham os sabres e arcabuzes... eles queriam ouro. Foi o que moveu o descobrimento das Américas; na verdade, o ouro move o mundo já a alguns milênios.
   Com tantas viagens oficiais pelos oceanos, os capitães e escrivães, certamente, produziram um conteúdo surpreendente de relatórios. Informações detalhadas de cada viajem. Relatórios e diários de bordo são uma fonte histórica riquíssima mas subestimada pelos historiadores. É claro que muitas cartas, relatórios e diários são levados em conta por historiadores competentes; mas a subjetividade e a superstição dos seus autores levam os historiadores a duvidarem da qualidade das informações.
   Relatos de OVNIS, monstros marinhos, navios fantasma e aparições sobrenaturais ocorrem com alguma frequência nessa páginas misteriosas da história. Por causa do ceticismo, muitos relatos surpreendentes foram deixadas de lado pelos estudiosos.
   O capitão Miguel Soverosa, na verdade, o piloto deste capitão, produziu um dos relatos mais chocantes e assustadores dessa época marítima da história, no início do século XVII. Esse desconhecido capitão-mór, da nau Destemida, no comando também da caravela Alcatraz, que o acompanhava como suporte, tinha a missão de comprar arroz e especiarias em Pegu, região recém-conquistada pelo portugueses na Ásia; daí reabastecer o estoque de Moçambique. Mas esse capitão acreditava que poderia cruzar o oceano índico em uma rota mais rápida do que rota usual que os portugueses faziam, talvez o nome dele estaria nos livros de história, não fosse o estranho relato dessa viajem, em adição ao fato de que nenhum capitão português optou por seguir essa nova rota marítima que o Capitão Soverosa descobriu. O leitor entenderá conforme eu transcrevo o documento aqui.



   Na era de mil e seyscentos e hum, sestafeyra, dose dias do mes outubro, terminamos de navegar a costa africana e estamos ao sul. Hum dia de sol, despois de seys de muyta trovoada. O capitão Soverosa tem hum caminho alternativo pera o porto de Sirião, em Pegu. Se ãtes passavamos entre Moçãbique e a Ilha de Sam Lourenço [os portugueses chamavam assim Madagascar, na época], o capitão acredita em passar por fora de Sam Lourenço, & rumar pera Pegu, com o vẽto a estibordo. Ajustei as velas pellas ordens do capitão.
   Terçafeyra vinte e tres do dito mes. Desd' o meo dia fizemos o caminho pera Pegu a nordeste, cõ vẽto forte a refrescar do sul. Destemida, a Nao capitania, pegou velocidade boa. Chegaremos mais cedo ao porto de Sirião, como planejou o capitão. Neste caminho novo, penso em registrar em mais detalhes esta dita
viagẽ, caso outros capitães pensem em se adventurar pello oceano índico longe da costa.
   Quintafeyra, oyto dias do mes novembro. Por duas semanas tudo ocorreu normalmente, apenas que vimos hũa tormenta muyto forte em nossa frente que o capitão decidiu enfrentar. "Em frente, marinheyro", o capitão dizia ao que manobrava a roda do leme [timão], ou seja, eu, "cõ firmesa e fé em Deos, cõpanheyro." Mas o capitão da caravela Alcatraz foy manobrando como se fosse dar a volta. Apesar dos sinais que lhes demos, o capitão, & os marinheyros da Alcatraz se recusaram a passar pella tormenta, & fugiram, presumimos, fazendo o caminho pera Moçãbique. A fuga de Alcatraz foy aqui registrada, & não isentaremos a desobediência do capitão da caravela de hũa conseqüência.
   Domingo, undécimo dia do mes. A tempestade desviou em direção ao sul bem rapidamente. Assim atravessamos ella pella lateral, cõ alguma sofrência mas sem mais trabalhos.
  Quartafeyra, vinte e hum dias do mes novembro. Desembarcamos no porto de Sirão. A cidade é muy maravilhosa, suas construções nativas são diferentes de tudo o que já vi, mesmo nas Índias; de material cor dourada e colofões pontudos; parecem casas de fantasia, construidas como que por encantos. Contrasta muyto cõ as construções portuguesas que vem sendo erguidas recentemente. É governada por Filipe de Brito e Nicote faz dous anos, entonces Sirião é portuguesa.
   Os armazéns estavão abarrotados de riquezas e fazendas. Enchemos a Destemida cõ dezenas de toneladas de arroz e pimenta pera daí seguir nosso itinerário. Além de fazendas, Sirião guarda seda de muy qualidade, & pedras preciosas, vinda de muytos lugares de Pegu. É demasiado evidente que não compramos somente comida.
  Domingo, vinte e cinco do dito mes. Partimos para abastecer Moçãbique cõ as fazendas compradas. Quando a Destemida zarpou, e fuy vendo cada vez mais distante o porto de Sirião, algo dentro de mim me alarmou sem motivo, senti algo a estar errado nessa vi
agẽ; pode ser o novo caminho pello oceano, também a desobediencia da caravela Alcatraz, que me trousserão incertezas quanto a esse itinerário. Mas escondi do capitão minhas duvidas; posto que elle estava confiante; pello motivo de que conseguimos comprar cõ todo o ouro que troussemos, barganhamos cõ muy proficiencia."
   Sestafeyra, sete do mes dezembro. Encontramos a caravela Alcatraz não muyto distante de onde ella estava quando fugio; estranho o bastante somente por isso. Mas quando o capitão Soverosa decidiu abordar a caravela, encontrou os marinheyros em estado de histeria, em hum pavor que chegava a as raias da insanidade. Quando o capitão abordou a caravela cõ alguns homens, os marinheyros insanos da Alcatraz simplesmente pularão da caravela para o mar. "Homens ao mar", o Capitão gritava, ordenando que boias fossem jogadas para ajudar a elles, mas os marinheyros insanos nam queiram ajuda; apenas nadaram para longe, pelo mar aberto. Amarramos a caravela a a nau Destemida e seguimos para Moçãbique, abismados com um último acontecimento.
   Sábado, oyto do dito mes. Eram cinco d'alva quando vimos hũa tormenta bem na nossa frente, maior que aquella última. O sol subia pella popa da Nao, mas as trevas da medonha tormenta davão dous tons contrastantes ao céu em aquella alvorada: de hum lado o sol tentando clarear, & d'outro a tempestade enegrecendo o dia, como hũa peleja de duas forças da natureza. Cõ os mares grossos nos deu hum pé de vento que nos impedio contornar a dita tormenta, realmente nos levando directo pera ella em muy velocidade. O capitão ordenou que as velas fossem baixadas, & que a âncora fosse lançada. E tínhamos a esperança, agasalhados dentro da Destemida, de aquella tormenta se hir.
   O capitão e eu, sendo seu Piloto, ficamos no Chapitéu [é o cômodo mais elevado da nau] de onde abríamos a janela algũas vezes com o objectivo de vigiar a trovoada. Mas nada podíamos ver por aquella janela por horas, apenas sentíamos o sopro aquado da tormenta em nossos rostos, vindo de hum negrume absoluto.
   Quando finalmente a luz azulada d'alva pode ser percebida, e os ventos acalmando, o capitão e eu saímos directo pera o convés da Destemida. Lá fora tivemos mais assombros. A caravela Alcatraz se desprendeu da Nao, & sumio. Quanto a a tempestade, avia trevas em toda a nossa volta, em hum raio de hũa legoa de vinte ao grau [medida náutica que equivalia a 5555 metros]. A luz que víamos vinha tão somente do centro da abóbada celeste. Meu pai, também navegador, me contou hũa lenda sobre naos, & galeões, & caravelas que encontraram o centro de hũa tormenta; isso a tẽpos remotos, de capitães de séculos passados que raramente entravão no centro de tempestades; esses capitães contão que é sinistramente calmo.
   Mas avia algo de que nos estranhamos mais ainda no centro dessa tempestade: Hum pequeno navio cõ bandeira de escripta persa, de aparente feitio mogol, pairava sobre as águas, ainda hum tanto agitadas, apesar da calmaria.
   O capitão Soverosa chamou alguns dos seus homens mais fortes, & notáveis, & também a mim cõ o objectivo de abordarmos o navio mogol. 

  O nosso cozinheyro Mustafá tinha nome, & fama de ser conhecedor da lingoagẽ persa, também da cultura mogol, & otomana; posto que era otomano, de fé islã. Sabendo eu isto, sugeri ao capitão que incluísse o dito cozinheyro no grupo de abordagem do navio mogol.
   Abordamos o navio nam encontrando nada em seu convés. Ao adentrarmos na luxuosa cabine, logo na primeira visão, encontramos hũa mesinha, & hũa rocha cristalina esculpida sobre ella, na forma de semiesfera. Apoiada em hũa base adornada, a parte plana da semiesfera ficava voltada na direcção de quem entrasse na cabina.
   Ao virarmos nos deparamos com hum homem em estado de choque, vestindo roupas típicas de hum mogol, & usando hum turbante desalinhado. O capitão pedio que eu, & o Mustafá, & mais hum marinheyro, ficassemos cõ elle. Entonces, o capitão ordenou que o resto dos homens investigassem os conveses inferiores.
  O homem estava catatônico repetindo sempre hũa única palavra, que o Mustafá traduzio "a sede, a sede, a sede..." Quando lhe troussemos água, o dito homem jogou a caneca furiosamente contra a parede, & avançou no capitão, no que segurei o insano, & elle ainda pôs se a dizer algo na lingoagẽ persa. "Elle disse, 'o copo somos nós', capitão." Traduzio Mustafá, intrigado.
   Nesse ínterim, Magalhães, o outro marinheyro de guarda, escolhido pela sua couragẽ em crises de dias anteriores, saio do seu posto, & entrou na cabina. Elle tinha hum sorriso ensandecido na face. Elle disse, com hũa calma insana: "Capitão, Gooragh está apenas cõ sede. Gooragh recompensa os seus; se formos fieis. Nam se preocupe, capitão, somos todos para Gooragh agora." O homem delirante se coloca de frente ao cristal que tínhamos visto. Cõ os braços cruzados, & mãos tocando os ombros, & sorrindo insanamente (como se estivesse nas nuvens), o homem, outr'ora respeitável, agora se balança, como hum menino, e diz mais hũa insanidade: "Fuy tocado por Gooragh, capitão." Dito isso o homem se torna como que hum vulto, despois do que, nam dá mais a as vistas. Lá fora, a tormenta, distante, ainda que unidireccional, mostrou que ainda estava furiosa; cõ suas trovoadas e relâmpagos.
   Abismados, evacuamos imediatamente o navio mogol, levando também o homem catatônico, mas não nos esquecendo de levar hum pergaminho que estava nas mãos do dito louco. 
  Colocamos Mustafá, o cozinheyro, em frente a hũa mesa, abrimos o pergaminho na sua frente e sustentamos a esperança de que o otomano nos explicasse qualquer cousa que desse sentido aaquella situação assombrosa. "Ohh! Isto é sihr, do tipo mais imundo que nunca tinha visto, & muy condenável no islã, capitão." Estes forão os únicos dizeres do cozinheyro, por aquella hora. Mustafá se dedicou a examinar o pergaminho por horas. Notávamos também que a tormenta não mais se movia, nos colocando cercados por hũa muralha de trevas e trovoadas.
   "Nos conte o que descobrio em estas horas todas, Mustafá!" Foy a frase do capitão, entrando impaciente no cômodo onde Mustafá estudava.
  "Não compreendi por inteiro, mas vou lhe dizer o que entendi, entonces." Assim, Mustafá seguio a explicar o que descobrio ao estudar o pergaminho.
   "Minha actual fé islã condena esse tipo de estudo; eu mesmo fui praticante dessas cousas sórdidas, mas mudei para hũa profissão mais, digestiva, vamos dizer assim. Existem temas e temas de estudo prohibidas como essa: ha a alquimia, & a necromancia, & a advinhação... isto aqui é raro, os poucos que estudam isto a chamam de Piliologia. Por suposto, capitão, é o estudo de como se comunicar cõ outros mundos."
   "Outros mundos, como céu e inferno?", perguntei eu, curioso.
  "Não exatamente, me escutem: no cosmos, cada possibilidade precisa acontecer. Existe hum mundo onde acontece o que for que vós imaginais. Capitão, pense na cousa mais asquerosa, & imunda que puder, & no que ha de mais perverso, & profano... existe hum mundo que têm o que vossa mercê pensou! Por esse motivo, isto é muy prohibido, capitão!"
   "Mas se tudo acontece, ha mundos de pura maravilha." Assim desafiei o cozinheyro. No que elle me refutou: "Mas como saber o que vai encontrar, quando vossa mercê rasga o véu que nos separa d'outros mundos? Ou como saber o que pode querer entrar aqui pela abertura? Acha mesmo, Piloto, que aquelle marinheyro, que sumio diante de nossos olhos, foy pera hum mundo de maravilhas? Aquelle Gooragh lhe afigurava um anjo?"
   "E o que impede Gooragh de invadir o nosso mundo?" Perguntei.
   "Talvez esteja fraco." respondeu Mustafá. "talvez esteja... com sede."
  Despois de hũa pausa retórica, Mustafá nos mostra hum diagrama desenhado no pergaminho. Eram diversas circunferências ligadas por traços, & alguns símbolos dentro, & palavras árabes. "Nem todo o mundo pode ser acessado por qualquer mundo, capitão, os muytos mundos formam hum coletivo, hum "cacho." Rasgamos o véu apenas de mundos adjacentes, nunca mais distante."
   "Entonces, os mundos estão dispostos no plano material."
   "Não, capitão, todos os mundos existem simultaneamente, no mesmo espaço. Aquelle Gooragh está aqui entre nós, só não podemos interagir cõ elle. Para os mundos não se chocarem, elles acontecem em hũa frequência vibracional diferente. Eu falo em 'cachos' e em 'mundos adjacentes' porque é apenas possível passar por mundos de frequência vibracional mais próxima a a que estivermos."
   "E o que acontece se alguém vai para hum mundo de vibração muyto distante da que está?"
   "Provavelmente nam suportará a viagem, pois sentirá hum choque vibracional muy destruidor. É como tentar pegar hum atalho, por hum caminho apertado e cheio de espinhos."
   "Nam está pensando em passar pelo véu, não é capitão?" Perguntei desconfiado, conhecendo a couragẽ imprudente do capitão.
   "O Magalhães é hum membro importante da tripulação, cada marinheyro é. E pode ainda estar vivo."
   Mustafá continua com certo entusiasmo. "Me parece que aquelle mogol catatonico estava planejando cousa mais insana, capitão: elle anotou, & fez traços no diagrama com hũa pena. Este círculo adjacente ao nosso tem o nome de Gooragh escripto em persa, & ha hum risco de pena traçando hum caminho entre quatro outros mundos, o último também adjacente ao Gooragh. Esse último, está escrito enxofre, capitão. Não sei o que tem lá, somente que é hum mundo de enxofre."
   "O mogol pretendia atrair Goragh pera esse inferno!"
   "Éhh.. capitão."
   "Nam se esqueceram de nada? Sequer sabemos como abrir hũa fenda pera viajarmos a esses mundos todos."
   "Eu tenho hũa boa teoria", e então Mustafá continua. "Realmente imaginei que portais que levam a outras frequências vibracionais envolvessem cristais, como aquelle objecto cristalino que vimos. Perto de cristais qualquer vibração é amplificada. É evidente que aquelle cristal específico nam é qualquer cristal, mas estou certo de que a função delle é abrir hum intercósmos, hũa porta... entrando em ressonância vibracional cõ outros mundos."
   "O véu se rasga... como copos de cristais quando se quebram!" Disse o capitão, em hum pisco de luz.
   "Agora está entendendo capitão!"
   "Com som!"
   "Som? É! Som seria hum bom catalisador que faria o cristal funcionar."
   "Com música!"
  "Música? Vais tocar para o cristal, capitão?" Perguntei incrédulo.
   "Vejo no pergaminho algumas instruções sobre frequência, eu posso extrapolar, & definir qual a frequência certa de cada mundo do trajeto riscado pello mogol. Presumindo que o senhor pretenda nam apenas resgatar o Magalhães, mas também mandar esse Goragh pera aquelle inferno no processo."
   "Eu tenho hũa rabeca na minha cabine, que toco por diversão."
   "Vai precisar tocar a nota exata... & com volume muy alto capitão."
   "Se preocupe em determinar as notas, esta será a tua tarefa. A minha será afinar muyto bem aquella rabeca velha."
   Quando Mustafá terminou, o capitão já estava de posse de sua rabeca, aguardando ansioso.
  "Quando for fazer o caminho reverso, capitão, a nota deverá ser a imediatamente oposta."
   "Entendi. Algumas são notas bem difíceis de se tocar em hũa rabeca; mas será possível. Que interessante! A nota de hir daqui directo ao mundo desse Gooragh é muyto parecida ao som da trovoada."
   O capitão se dirigio ao navio mogol com o seu mapa musical muyto bem guardado. Ficou quase hũa hora tentando tocar a primeira nota, & afinando a rabeca, & tentando novamente. Eu estava no navio mogol também, mais distante, observando.
   Após tocar hũa nota estrondosa em sua rabeca elle apenas desaparece em hum vulto, como aconteceo ao Magalhães. E reaparece menos de hum segundo depois, semimorto, & anêmico, & afligido por centenas de escoriações, & suas roupas em trapos, & o pergaminho em frangalhos.
   Anno de mil seyscentos e duos, hum sabado, cinco dias do mes janeiro. Levou hum mês para hum médico, com a ajuda de Mustafá, curar as feridas do capitão. Aquella tormenta começou a disspar tão logo o capitão retornou do outro mundo, somente algumas horas despois d'aquelle sábado insólito do dia oyto de dezembro.
 Quando o capitão recuperou os sentidos, havíamos, entonces, chegado em Moçãbique, trazendo também o mogol. O infame objeto de cristal foy deixado a a deriva em aquelle barco, junto com onde quer que se encontre a desaparecida caravela Alcatraz. Como capitão interino, eu tomei a decisão que me parece aquella que o capitão tomaria, no que segui o itinerário.
   De posse de seus sentidos novamente, o capitão pôde contar o que elle passou em sua adventura por outros mundos. Ele contou apenas para mim e para Mustafá. Mas permitiu que eu registrasse tudo nesse diário de nevagação, pois era a verdade. O capitão prossegue, entonces.
   "Assim que eu toquei a primeira nota, eu adentrei em hum mundo isolado, caminhei algũas horas por hum sertão desolado, com esporádicas cercas e casas podres, em ruínas; também havia muita poeira."
   "Capitão, vossa mercê disse que caminhou por algũas horas?" Mas voltastes instantes despois de terdes desvanescido!" - Exclamei ao capitão.
   "Para mim foram horas, quase hum dia, passando pellos mundos."
   "Parece que o tẽpo passa de forma diferente n'outros mundos." Comentou Mustafá.
   "Eu procurei mas não achei outro cristal para passar pera o próximo mundo."
   "Talvez diferenças sutis na forma como vossa mercê tocou a nota na rabeca, te levou pera mais ou menos distante d'outro cristal. Mas eu lhe garanto que é necessário haver outro cristal n'outro mundo para a conexão funcionar."
   "E avia, eu tive que procurar. Após hũa caminhada naquele sertão desolado eu encontrei hũa pequena villa onde moravam pessoas muyto estranhas. Todos eles eram extravagantes, mas pessoas muyto feias, com feições grotescas. Havia hum lugar onde várias dessas pessoas hiam para por cor nos cabelos, até alguns homens. A vestimenta lembrava a moda londrina, mas com estética tão mais excêntrica quanto mais decadente." 
  Tudo isso em hũa villa decrépita, onde animais decadentes e doentes passeavam em meio a as pessoas e a as suas crianças. E hum cheiro horrível de falta de higiene; que só não era mais horrível que os fortes perfumes vencidos que as pessoas usavam. Uma mulher horrenda, de feições maduras, vestindo peles extravagantes, com forte maquiagem e cabelo vermelho, olhou em mim e sorrio libidinosamente; me deu calafrio e ânsia, era hum ambiente muyto agressivo aos sentidos, no pior dos sentidos.
   "Notei também que aviam muytas pessoas com defeitos, hũa perna para menos, outro hũa perna para mais, que pareciam exibir como hum sinal de elegância. A cor da pele de todos deles variava entre o pálido até o amarelado, e alguns eram cinzentos.
   "A palavra 'decadência', em persa, aparece no primeiro mundo do trajeto." - Mustafá acrescentou.
   "Os tais defeitos, dizem que surgem quando pessoas de parentesco próximo se unem. Eu penso que a excentricidade do povo desse mundo também os levam a se unirem entre si, com parentesco muyto próximo, talvez mesmo incestuoso." - comentei eu; no que o capitão continuou.
   "Eu entrei em hũa loja onde se vendiam cousas absurdas que prefiro nem comentar. Mas entre as cousas mais leves estavam hũa prateleira com objectos fálicos, & outra com cabeças de animais esquisitos, & hum cabedal com roupas extravagantes usadas, cada qual com hum fedor humano diferente, desde suor até mijo. Mais eu vi algo no meo de aquellas imundícies que me trousse alívio. Era hum objeto cristalino. Estava em hũa prateleira atrás do balcão do vendedor, hũa pessoa bizarra, com hum sorriso falso no rosto e quatro braços."
   "Eu nam sabia falar o idioma deles, mas eu assinalei que estava interessado em adquirir aquelle cristal. Elle trocou o objeto pello meu casaco, que elle achou interessante. Saí da loja pensando na barganha que fiz e quando ouço uns rasgos, vi que o vendedor já estava usando o casaco."
   "Me afastei, então, daquela villa decadente e toquei a próxima nota. Me encontrei em hũa caverna extremamente fria, já nam parecia que eu tinha feito hũa barganha com aquele vendedor."
   "Eu segui a luz e quando cheguei na boca da caverna me encontrei em hum mundo congelado, mais congelado que o mais extremo sul a que hum português adventureyro poderia ir. Não muyto longe dali havia hũa cidade, com construções altíssimas, feitas com metal, haviam objectos caídos nas ruas. Esses últimos, por mim, pareciam hũa mistura incoerente de cordames negros entrelaçados em cousas que pareciam máquinas. Nunca saberei para que essas máquinas funcionavam; porque nam avia ninguém ali."
   " ' Desolação', é como o diagrama chama esse mundo." Mustafá comentou. Entonces o capitão seguio o relato.
   "Adentrei em hũa espécie de templo e lá estava outro objecto cristalino. Toquei a nota e me fuy apresentado ao hum novo mundo. Este mais bonito, com prados e matagais perfumados de relva. Senti que avia paz nesse mundo, com céu azul, & vento suave, & hũa infinitude de espaço verdejante.
   "Mas despois de algũas centenas de metros de caminhar, aparece por de tras de
hũa colina, a a minha direita, a minha decepção. Hũa criatura vil, do tipo que vê como comida tudo o que se move em sua volta. Era do tamanho de hum elefante, para mais, e com hũa bocarra enorme, & denteada. Nam vi braços, parecia ser feita apenas de pernas e boca. Corri como hum insano até o matagal perto dali. Na corrida, vi correrem comigo o que pareciam ser ratos gigantes, correndo em duas pernas; a criatura vil se banqueteou com aquelles roedores estranhos, permitindo que eu sumisse da vista."
   "Após ter assustado hũas pequenas criaturas que parecião formar hũa tribo no meio da mata, encontrei, no topo de um totem, outro cristal. Toquei a nota e meus cinco sentidos me mostram o quarto mundo."
   " 'Primitivo', capitão, referente ao mundo que passastes."
   "No quatro mundo, que se chamava enxofre..."
  "Na verdade, avia no diagrama, sim, o símbolo alquímico 'enxofre', mas a palavra grafada é "Gênesis", capitão." Assim Mustafá interrompe o relato do capitão, que prosseguio.
   "Neste mundo de enxofre, o ar era horrível, & nam parecia respirável, & de temperatura muyto alta. O céu era carmesim. Avia hum mar podre, & viscoso, & amarelado, & borbulhante; & me vi em hũa ilhota de mofo, cõ grandes cogumelos esquisitos. Notei também que parte da ilha era hũa rocha cristalina. A única atitude possível era tocar a nota para o próximo mundo do trajeto, o mundo de Gooragh, na esperança de a rocha ser do material do dito cristal cósmico."
   "Era realmente isso. Me encontrei, finalmente no mundo grafado "gooragh" no diagrama persa. Era também hum mundo desolado, de ar muy seco. Eu fuy caminhando pella beira de hum precipício que lembrava hum daqueles canions, que contam aver na América. Quando observei melhor notei que não era canion, era o leito seco do oceano."
   "Desci aquelle precipício poeirento e encontrei já o cristal, muyto perto de hũa caverna. Mas outra coisa chamou minha atenção. Avia hum templo construído na parede do precipício, a hũas dezenas de metros d'onde eu estava. A base do templo ficava hum pouco acima do leito do oceano; teria sido construído, entonces, quando avia ainda hum mínimo de mar em aquella costa."
   "Eu adentrei no dito templo e os desenhos grafados ali me deram a idéia de hum povo estranho, de olhos grandes, que nam eram, de modo algum, humanos. Eram parecidos a rãs. Essas ditas rãs adoravam hum tipo de bolha ou massa, como parecia pellos desenhos. Esse 'deos' disforme deles os oprimia exigindo constante água para matar sua sede. Mas logo, os desenhos me mostraram que a monstruosidade também passou a exigir sacrifícios de pessoas, quando a água ficou escassa."
   "Saí daquelle templo atordoado por causa da história cruel que esse mundo tinha me contado. E, pellos eventos que passei até aqui, ficou claro para mim qual era o propósito de Gooragh."
   "Enquanto caminhava eu, pelo leito seco do que já fora hum oceano, & contemplando tristes esqueletos de estranhas criaturas marinhas que moravam em aquelle oceano, eu encontrei o defunto seco e empoeirado do meu oficial Magalhães, que foy humilhantemente transformado em hum acólito submisso da criatura, & que, de bom grado, lhe serviu de 'copo d'água.' "
   "Despois de hum breve momento de luto, ouvi hum som de alguém aspirando água de forma muyto sedenta. Foy entonces que vi, ao longe, hum grande monte de carne enrugada que ficava cada vez mais úmida e rosada. Aquella blasfêmia natural, senhores, é aquilo que se chama de Gooragh. Estava secando hũa das últimas poças de água do mar que restavam espalhadas pelo leito do oceano."
   "Entonces, hum probóscide fungante aparece da frente da aberração, que estava de costas para mim. Elle fungou alto, & sentiu de longe o cheiro da minha pele úmida de suor; suor e outros fluídos que a criatura não diferenciava muyto de hũa bella poça de água do mar. A criatura esticou horríveis pernas disformes, provindas de onde nam fuy capaz de saber, & veyo correndo em minha direção. Desengonçada mas incrivelmente rápida, pello leito cravado de rochas. Se precisava, dava cambalhotas para contornar obstáculos, mas nam parava em seu sedento desespero. Parecia
hũa bolsa gigante de líquidos, feita de pele humana, com vida própria e insaciável, vindo em minha direção.
   "Eu corri em direção a aquele cristal, eu hiria levar aquelle monte de pele profana ao inferno sulfuroso. Quando Gooragh se aproximou o bastante de mim, elle erigio
hũa pequena tromba e pareceo tocar uma nota inaudível. Lembrando eu do estado hipnótico de Magalhães, tapei meus ouvidos e continuei a correr, estando agora bem próximo do cristal. Percebendo a inutilidade da idéia, Gooragh tenta tocar hũa nota, que de tão aguda lhe machucou seu aparelho fônico; Gooragh estava mesmo fraco demais para hir ao mundo humano, precisava de mais água, nem que fosse a água escarlate que corre nas veias."
   "Entonces, hũa tempestade de areia surgio (seria mais hum truque daquella blasfêmia ambulante?) e eu nam consigo ver muyto mais do que hum palmo do nariz. Mais eu ainda hia na direcção que minha memória lembrava ser a direcção do cristal. Já sentia o calor do sangue quente daquella perversidade que me perseguia quando eu cheguei próximo o bastante do cristal, no que comecei a sentir o probóscide sugador desesperado da criatura entrando pelas minhas vestes. Eu toquei a nota, mas nam consegui tocar alto o bastante para abrir o véu pera o outro mundo; porque Gooragh já avia começado a saciar sua sede."
   "Mas... conseguistes, capitão, afinal, estás aqui, não é?", perguntei.
   "Algo inusitado aconteceu, como hũa bẽçam de Deos todopoderoso: da boca da caverna vi surgir o vulto de duas criaturas, de olhos grandes; mas estavão abatidos, & cansados, & enfraquecidos."
   "Eles aviam ouvido a nota da rabeca, & pareciam compreender o meu propósito. Enquanto eu estava sendo esvaziado por Gooragh, sem nada poder fazer, elles começaram a cantar. Acreditem! O canto deles era lindo, cõ muyta precisão musical, elles forão subindo o tom até combinar com o tom que eu avia tocado. Nesse ínterim, eu tive vislumbres de muytos mundos, mundos de pessoas felices, mundo de pessoas violentas, mundos sem pessoas; mas só passaria pella abertura do véu quando os meus amigos cantassem em volume alto. Quando perceberam que acertaram a nota, elles aumentaram o volume do canto e eu pude hir ao mundo de enxofre, junto cõ Gooragh atrelado a mim."
   "No mundo sulfuroso, Goragh me soltou e começou a se debater violentamente, & soprou notas agudas e estridentes que eu jamais concebi que penúria pudesse levar qualquer criatura a soar. Enquanto eu via a criatura estribuchante, percebi, em seu 'embigo' outros três 'gooraghs' menores, como se fossem as crias daquela imensa obscenidade. Quando a criatura caiu no mar de enxofre, seus tormentos se multiplicaram até nam aver mais movimentos."
   "Em minha situação eu nam podia mais voltar pello trajecto. Se Gooragh me bebia, entonces, eu diria que eu era agora hum copo meo vazio. Nam tinha mais força para fazer algo além de rastejar. Minha única chance era pegar hum... atalho, como disse Mustafá. Rastejei até a rocha cristalina e extrapolei a nota que me levaria directo para o meu mundo, & suportei a dor do choque vibracional."
   "Estamos felices que seu atalho tenha dado certo capitão."
   Na noyte de Domingo, dia seys daquelle mes, o capitão me vio escrevendo em meu diário de navegação e me pedio para deixar hũa mensagem no documento. Esta foi a mensagem:
   "Eu, o capitão Miguel Soverosa, da Nao Destemida, alerto que, em nẽhũa hipoetese, outro capitão tente esse caminho alternativo. A exploração descuidada é hum empreendimento que pode nos levar a maravilhas indescritíveis que nem nossa fantasia concebe, mas é provável que paguemos por ellas hum preço cunhado em horrores igualmente inimagináveis."


     

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