O Manah Negativo





  NNa degradação de uma casa abandonada, onde o musgo invade faminto as paredes descascadas, e de onde a grama ao redor ousa crescer mais alta, à meia luz de um frio entardecer, um indigente de terno gasto encontra seu próximo leito.
  “Nada mal”, pensa ele. Embora não houvesse também nada de bom naquele buraco.
  Após vasculhar aqueles quartos sufocantes, onde o pó do tijolos se mistura no ar, o mendigo se apruma debaixo de uma velha pia... de um lugar que outrora fora uma cozinha.
   Ao seu lado, ele amontoa troços inflamáveis, entre produtos do homem e produtos da natureza. Ele tira do bolso um isqueiro que, em tempos menos emergentes, acendiam cigarros, mas agora ele reservava para atear fogo. Cada faísca daquele isqueiro era precioso para o pobre homem. E o seu montinho de entulho ele acende para aquecer-se naquela noite fria que aquele fosco pôr do sol estava prometendo.
  Relâmpagos atiçam os olhos do homem e o fazem ter medo de que uma tempestade invada seu precioso abrigo. Ele tenta fechar a janela enferrujada daquela casa abandonada, ainda com vidraças rachadas.
   De pé ante a janela, antes de fechá-la com alguma dificuldade, o homem relembra o conforto de ter uma moradia, olhando aquelas nuvens castanhas perseguindo o brilho avermelhado de um sol fugitivo.
   “Até o pôr do sol para mim é uma droga!” - Resmunga ele em voz alta, como se alguém fosse ouvir o solitário sacomano.
    A chuva dá o seu ritmo ruim na vidraça rachada.
    Mas o homem não consegue dormir de barriga vazia. A esmola neste dia foi escassa; não alcançou nem o valor de um misto quente.
    Sem dormir, o andarilho, que era aventureiro de nascimento, decidiu vaguear pela casa, para ver se encontrava algum entulho útil. Uma lona talvez.
   Na varanda da casa havia lenha abandonada, ele pegou a menor lenha que encontrou, caminhou até sua fogueira e alimentou as chamas. Mais calor agora.
   "Parece pouco mas estou melhor agora do que antes."
   Após uns poucos passos, em mais explorações pela casa em ruínas, já sendo envolta pela escuridão, ele notou que a velha casa tinha um porão ainda acessível. Desceu curioso aquelas escadas precárias e podres. Uma vareta acesa na ponta lhe servia de tocha.  

  O porão parecia ter sido usado para dissecar animais. Mas também haviam itens incongruentes, entre acessórios para deficientes e brinquedos de criança. Havia uma jaguatirica empalhada, jogada no chão. O bizarro sorriso mortício de seus dentes afiados revelavam não só a profissão do dono da casa como também a sua falta de proficiência nela.
    “Um taxidermista, talvez. Mas péssimo.” Pensou o homem.
    Um estranho aroma adocicado se espalha pelo ar envelhecido e sufocante daquele porão. Na parede ao fundo, um mofo sórdido crescia, já por quase toda a parede. Era felpudo, maligno e negro; mas o homem faminto notou que o aroma provinha desse mofo. Sentiu uma vontade irresistível de experimentar o mofo.
    Ele aproximou os lábios da parede e experimentou o fungo vil. Ele não resistiu em dar mais umas mordiscadas, era doce como o previsto, mas logo voltou a si e sentiu ânsia do que estava fazendo. Em sua boca ficou um sabor marrento e seco de bolacha vencida.
   “Esse manah não vem de Deus.” Recitou o homem, que tinha talento para a poesia.
   Voltou à sua cama improvisada e conseguiu dormir. Mas acordou algumas horas depois passando muito mal. Claro, comendo porcarias desconhecidas, não é para menos.
   Ele se levantou cambaleando, apoiando-se na parede. Seu estômago dando sinais de rejeição àquele jantar infame. Logo, o homem vomita o que parecia ser tinta de pena; um vômito preto, tinto.
   Mas isso não lhe aliviava, ele voltava a vomitar, e parecia vomitar mais do que tinha comido! Aquele coisa maldita parecia estar crescendo em seu estômago. Ele vomitou pela casa inteira. Até que pareceu ter uma pequena melhora. Deitou-se novamente.
   Mas o cheiro de mofo adocicado, impregnava suas narinas, até que, incomodado com o ar sufocante, acordou de um sono leve e levantou-se novamente.
   E descobriu o interior da casa absurdamente mofado por aquele fungo maldito. A luz da pequena fogueira sequer conseguia apontar-lhe a saída. Os felpos de mofo pareciam prover nojentos cabelos àquelas paredes. O interior da casa jazia agora infestado por um algodão maligno e escuro que distorcia o padrão cúbico das salas daquela casa. O pobre homem sentiu-se em meio a um matagal de fungos que avançava a olhos vistos.
   Quando ele olha mais atentamente, percebe uma pessoa grudada na parede, em meio àquela selva negra e felpuda. Era outro andarilho, que buscava abrigo da chuva. Parecia semimorto e em seus olhos brotavam cogumelos, pretos como tinta.
   O único canto em que o fungo não avançou era onde o sacomano estava dormindo. O homem presumiu, então, que o fungo não gosta do calor da fogueira. Ele pegou vários gravetos acesos e fazia o mofo recuar, até que ele conseguiu sair da casa.
   Já não estava mais chovendo. O mendigo ia fugindo quando voltou-se, olhou para a casa mofada, seu olhar era de um homem vingativo, e jogou os gravetos acesos na velha lenha daquela varanda. A madeira de pinho pegou fogo rapidamente e o mofo não conseguiu fugir das chamas. Logo a casa inteira pegava fogo.
   Mas o nauseante mendigo, ainda mal pela sua refeição imunda e pela fumaça, não conseguiu ir muito longe. Desmaiou a metros de distância. Ele ainda sentia ânsia.
   O mendigo acordou na cama de um hospital onde fez sinal para enfermeira, que estava ali por perto, que iria vomitar. A enfermeira continha o vômito dele no saco para vômitos. O homem queria dizer algo mas não parava de vomitar.
   – F… f... fogo… – ele falava com dificuldade, enquanto vomitava mais e mais; e só o seu pensamento completava sua comunicação malsucedida: “Queimem isso no fogo, seus idiotas.”
    A enfermeira logo pediu ajuda e o homem não parava de vomitar.
   Quando amanheceu, a polícia e os jornalistas estavam em volta de um hospital infestado pelos felpos do mofo maldito. Eles não viam as decoradas paredes externas, não viam a maioria das janelas e portas; viam apenas mofo.
   Um policial aproximou-se o máximo que pôde do hospital e se comunicou com seu superior pelo rádio:

“Senhor, algo bizarro está acontecendo dentro do hospital.
 Deus do céu, senhor: vejo pacientes, enfermeiras e médicos; todos estão, gulosamente, lambendo as paredes internas!”


   Quando focos de fogo começam a surgir de dentro do hospital, a câmera flagra um corpo se jogando pela janela, aos estilhaços. Um homem de terno gasto aterrissa desajeitado no chão. O câmera faz um close no rosto do homem.
    Sua boca tingida como que por tinta preta, seu olhos estavam entre a tristeza profunda e a coragem insana. Ele corre como um animal, sem permitir ao repórter tentar uma entrevista.
    Enquanto isso, o hospital já incendeia irremediavelmente.
    Logo, todos os espectadores da cidade se espantam ao ver o homem, lá de longe, acender em chamas.
    O sacomano fez um corajoso sacrifício, usando as últimas faíscas de seu isqueiro. Assim ele poupou a cidade de ser infestada por sua refeição profana.

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