Kaos, por Fernando Vrech


    Após pesquisar sobre as Pulp-Magazines me veio a ideia de criar minha própria série Pulp-Fiction e publicá-la em periódico, como as Pulp-Magazines faziam no começo do século passado. Buscando emular até mesmo o estilo literário daquelas histórias: apelação e tecnobaboseira. Imitando o estilo de um Pulp-Fiction mas criando uma história de qualidade.
   Resolvi experimentar criar um texto que é, na maior parte do tempo, o diálogo entre duas pessoas: um homem atormentado e seu sinistro psiquiatra. Quando a fala passa para o outro personagem eu indico isso pulando uma linha.
   O que será que esses dois personagens conversam? Confiram o primeiro capítulo de "Pelas Névoas do Tempo", de Fernando Vrech:








 “A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente.”
Albert Einstein






Introdução


  Essa história não é nada menos do que o arquivo clínico de Daren Ryos, arquivado por seu psiquiatra, o Doutor Apolo Adler, um doutor que parece ocultar interesses sinistros que vão muito além da psiquiatria.
  O doutor Adler inclui anexos estranhos ao documento, como artigos de revistas e manchetes de jornal.
  Daren Ryos é atormentado por pesadelos muitos realistas.
A maior parte do texto é um diálogo entre o doutor Adler e Daren Ryos. Você sabe quem está falando pelo contexto e pela alternância de personagem, indicada por uma linha vazia.





Capítulo I - O Sonho Incomum do Paciente

   Essa é a primeira sessão em que Daren reclama de seus pesadelos. Dessa sessão em diante eu achei importante registrar por escrito os diálogos relevantes.  (Anotação do Doutor Adler)





 
Sessão de segunda-feira, vigésima terceira sessão do paciente.


“Hoje à noite eu tive um sonho terrível, doutor Adler, eu estava em uma floresta sombria, de noite, assustado e correndo. Estava claramente perdido, fugindo, mas sem que eu pudesse definir algo me perseguindo.”

“Se não podia definir ninguém te perseguindo, do que estava fugindo, Daren?”
“Eu... acho que… estava fugindo da floresta. Era assustador não poder enxergar nada no céu, nenhuma fonte de luz, nem sequer uma fonte pequena e fraca luz, e aquelas folhas batendo na minha cara conforme eu corria, nossa! Terrível!”

“Descreva a sensação, Daren.”

“Era a sensação de que a floresta era infinita, quer dizer, de que não adiantava correr pois ela estava em toda a parte! E que eu nunca poderia olhar para cima e ver as estrelas.”

“Mas quem garante que você poderia ver as estrelas caso chegasse a um lugar mais campado, Daren? Poderia estar nublado.”

“Isso foi para amenizar o meu pesadelo? Porque não funcionou doutor.”

“Eu estou dizendo que você idealizou um céu estrelado. O futuro nem sempre é estrelado Daren. Mas você pode parar de correr assustado, se sentar a fazer uma fogueira. Faça sua luz.”

“Ficar e enfrentar a situação, não fugir dela. A maneira como eu fujo no sonho é maneira como eu fuja na vida.”

“Você está muito ligado ao seu passado. Você quer de volta o tempo em que você morava com ela, Daren.”

“Minha ex-mulher, é verdade. Não é novidade que eu penso muito nos bons momentos que passei com ela. Ela era meu ‘céu estrelado.’ ”

“Mas foi você quem pediu o divórcio. Ela traiu você, você não tem mais um céu estrelado. Não queira voltar para um passado que não te serve, Daren.”

“Águas passadas não movem o moinho, não é Doutor?”

“Águas passadas.. hahahah! Quem criou esse ditado não faz a melhor ideia de como funciona a mente humana e sua dinâmica com o tempo.”

  “Doutor?”

“Aprendemos com o passado, Daren. Nossas experiências, acertos e erros. Boa parte da nossa personalidade é definida pelo que passamos. Não podemos esquecer do passado, ele é importante para nos autoconhecermos. Não podemos viver apenas no presente, como dizem alguns filósofos… Não somos feitos apenas do presente, ou apenas do passado ou apenas do futuro. Somos passado, presente e futuro. E temos que aprender a harmonizar esses três elementos em nossa mente.”
“O problema, Daren, é quando não aceitamos o passado: quando não nos perdoamos, quando não compreendemos que o que passamos não é nossa culpa; e que nem sempre temos o controle de tudo.”

“Devo aceitar o passado porque não posso ignorá-lo, ou cancelá-lo. Foi interessante o senhor ter me dito para eu fazer uma fogueira, no meu pesadelo. Significa que há muito o que eu posso fazer para suprir a mim mesmo, sem esperar muito dos outros.”

“Não há problema em esperar dos outros. O problema é esperar luz de quem já se apagou para você. Pensar em sua ex-esposa não é inútil porque ela é passado, é inútil porque ela não brilha mais em sua vida. Entende, Daren?

“Mas eu também posso encontrar outra luz.”

“Com certeza há muitos vaga-lumes por aí. Mas você precisa esquecer as estrelas para encontrá-los.”

“O senhor faz umas metáforas legais, Doutor!”

“Esquece essa coisa de ‘águas passadas’. Não estamos aqui para fazer você esquecer do passado, estamos aqui para melhorar sua dinâmica com o passado.”

“Tem razão, doutor. Mas... os pesadelos; eu não posso tomar algum remédio para eu dormir profundamente, sem sonhar?”

“Tome cuidado com químicas, elas podem ter… efeitos colaterais imprevisíveis. Você não faz nem idéia… ”
“Muitas vezes, um sonho persistente é causado por algum objeto no quarto, que chama a sua atenção, consciente ou inconscientemente. Procure no seu quarto algum objeto assim e traga para nós conversarmos sobre ele. Talvez os sonhos passem.”

“Então… até a próxima, doutor Adler.”



Sessão de Quarta-feira, vigésima quarta sessão do paciente.



 
“Então, doutor. O pesadelo continuou ontem à noite, mas eu trouxe algo que pode estar chamando minha atenção.”

“Mostre para mim o que chama sua atenção.”

Daren retira de sua mochila um livro embalado.

“É esse livro de geologia que eu comprei mas não tive tempo de lê-lo ainda, então nem tirei do plástico.”

“Vamos fazer o seguinte, Daren. Eu abro o livro e você me conta seu pesadelo. Não leia o livro ainda, vamos deixá-lo comigo, para que possamos trabalhar nesse sonho antes de que ele desapareça, tudo bem para você ter mais alguns pesadelos?”

“Minha intenção é acabar com os pesadelos, doutor.”

“Antes de acabarmos com esses pesadelos, é mais proveitoso para você compreendê-los. Mas se você não está disposto, pularemos essa parte de compreensão e partiremos logo para te livrar deles.”

“Não, doutor. Podemos compreender o pesadelo antes.”

“Então, conte-me seu pesadelo, enquanto eu procuro alguma referência no seu livro.”

“Mas como eu poderia sonhar me baseando em alguma referência de um livro que nem li ainda, Doutor?”

“Não confia no seu psiquiatra, Daren?”

“Pois bem, doutor, estou cético do seu método mas vou colaborar.”

“Então prossiga, enquanto eu desplastifico o seu livro e o leio.”

“Dessa vez, eu ainda estava na floresta mas estava de dia. Então eu podia observar à distância, mas não muito longe porque ainda estava muito sombrio. O preto da escuridão havia apenas sido substituído pelo branco da névoa. E quando eu procurava o céu azul não podia encontrá-lo porque a copa das árvores não permitiam. A visão ao olhar para cima era… catedrática.”

“Catedrática?”

“É, acho que inventei uma palavra nova mas… é somente assim que eu posso descrever: era místico como um templo vegetal.”

“A que distância você estava do seu ponto inicial, no sonho.”

“Eu corri por uns cinco minutos, meio quilômetro talvez.”

“Como eram as árvores?”

“Estranhas, as folhas pareciam de samambaias só que eram árvores e eram muito, muito altas.”

“Como era o som?”

“Estranho porque não ouvi nenhum pássaro cantando. Mas com certeza animais assobiavam, só não pareciam pássaros.”

“Carbonífero.”

“O que?”

“Você está descrevendo o período geológico do Carbonífero. Está aqui no livro.”

“Mas eu já disse que nem abri o livro! Acha que eu leio o livro com a força da mente doutor? Ahahah!”

“Daren, porque faz piada com o que não conhece?”

“O senhor acredita nesse negócio de entortar colher, força de mente…? São só truques, doutor Alder!”

“Claro, mas há truques que realmente entortam a colher.”

“Ein!?”

“Precisamos explorar mais o seu sonho, Daren. Porque não traz seu pijama na próxima sessão? Pode passar a noite dormindo no divã enquanto eu monitoro você.”

“Será interessante. E o senhor verá que eu não movo os móveis enquanto estou dormindo. Haha.”


Segunda-feira, vigésima quinta sessão do paciente.

   Esta sessão não conversamos muito. Daren jantou uma comida leve que lhe preparei e deitou-se no Divã enquanto eu passei a noite em claro o monitorando.
Notei que ele soava muito e revirava em um sono muito desconfortável. Por mais que eu tivesse vontade de acordar o paciente para livrá-lo do pesadelo, deixei-o sonhar.
Pelas quatro da madrugada o paciente acorda assustado e gritando.
Se levantou e trocou a roupa. Pedi para a empregada lavar o pijama do paciente. Então pedi ao paciente que me contasse o sonho.
(Nota do Doutor Adler)


“Bom, dessa vez estava garoando na floresta. Então eu fui caminhando por aquela floresta estranha do Carbonífero até que eu vi uma clareira com muita lama e uma libélula enorme atolada na lama. Doutor, a libélula era do comprimento do meu braço!”
“Quando eu cheguei perto para ver a estranha libélula eu ouvi um relâmpago e acordei com o susto. É isso.”

“Então você sonhou novamente com o Carbonífero descrito no livro.”

“Eu devo ter lido sobre o Carbonífero na internet. Acho difícil acreditar que eu leio o livro com a mente durante o sono e as páginas baseiam meus sonhos. É uma conclusão sem muito fundamento científico.”

“Você não conhecia o termo Carbonífero até eu te explicar; portanto você não havia pesquisado isso em lugar algum antes.”
“E acho que você bota muita fé na ciência. Muitas vezes os cientistas estão bem longe da realidade.”

“É sua opinião doutor. Estranha, porque a psiquiatria é uma ciência.”

“A psiquiatria é uma ciência empírica, de observação. As ciências convencionais dependem da experimentação. Dificilmente, o método científico é realizado sem que o cientista contamine os resultados com suas crenças ou descrenças. Tem ideia do quanto é difícil abrir a mente para novas ideias, Daren?”

“Está dizendo que eu sou algum tipo de paranormal. Tipo os artigos malucos daquele professor Akshan...”

“Porque não conversamos sobre isso na próxima sessão. Depois que eu trabalhar mais nos resultados da experiência que fizemos hoje.”

“Tudo bem doutor. Mas não vá contaminar a experiência com suas crenças ou descrenças. Olha o método científico, ein!”

“Daren, já te disseram que você é irritante às vezes?

“Não, dizem isso sempre e não ‘às vezes’. Nos vemos na próxima sessão doutor.”



Quarta-feira, vigésima sexta sessão do paciente.

“Daren, eu quero mostrar a você o local onde eu faço experimentos. Mas se você não guardar o segredo perderei minha licença. Você guardaria este segredo?”

“Bom. Desde que não seja nada ilegal eu guardo.”

“Não é necessariamente ilegal.”

“Tudo bem, Doutor Adler.”

Levei Daren para conhecer o porão da minha clínica, onde eu faço meus experimentos.
Sentamos um de frente para o outro, em sofás empoeirados, em meio a parafernálias de química e a viveiros de artrópodes e criação de fungos.


“Como pode ver, meu amigo Daren, psiquiatria não é minha única formação. Também sou químico e biólogo. Mas antes ainda de minhas formações acadêmicas, eu fui iniciado em outro tipo de conhecimento.”

“Outro tipo. Do tipo que não é ciência?”

“É justamente o que está pensando. Minha mãe era uma feiticeira. Falo do conhecimento arcano, antes do surgimento da ciência.”

“Eu respeito sua formação…. arcana, doutor. Mas como poderia a feitiçaria ser genuinamente considerada um conhecimento?”

“Bom eu diria que o conhecimento arcano, de bruxos, curandeiros e shamans, se resumia a observação de fenômenos e como esses fenômenos podiam ser utilizados. Já a ciência quer saber o porquê dos fenômenos, para só depois utilizá-los. Isso torna a ciência muito precisa em seu conhecimento mas, muito lerda em desenvolvimento.”
“Um feiticeiro não precisa entender um fenômeno, só aprende a utilizá-lo. Geralmente a feitiçaria não precisa de explicações, por isso pode explorar áreas do conhecimento que nenhum sonar, microscópio ou telescópio alcança. Entende a vantagem?”

“Bom, sinceramente, eu nunca vi nenhum fenômeno que eu não pudesse encontrar uma explicação lógica e científica.”

“Eu entendo que um engenheiro formado como você, Daren, seja cético. Você constrói tecnologia somente quando tem a explicação de como funciona o fenômeno físico ou químico envolvido.”
“Poderia apagar as luzes? Há um interruptor do seu lado!”

Daren apaga as luzes e comenta que lembrou-se do sufoco da floresta sombria do seu pesadelo.

“Minha mãe me ensinou sobre a força da vontade, o poder do desejo. Essa força, Daren é um poder mental.”

“A força da mente… sei. Eu repito doutor Adler, não há nenhum fenômeno que não possa ser explicado de forma lógica.”

“Concordo, caro amigo. Mas admita fenômenos que ninguém pode ainda explicar.”

Eu interrompo a escuridão e questiono Daren:





“Explique isso, Daren!”

Tentando manter-se cético, Daren responde:

“Impressionante doutor. Mágicos fazem isso o tempo todo em shows, são truques. Que truque está usando?”

“Tem razão quando conclui que há um truque. Luz simplesmente não poderia surgir da minha mão sem mais nem menos. Apenas fiz com que átomos de um pequeno volume de ar acima da minha mão se transmutassem em fótons… Não é mágica Daren,…
...é magia.”

Finalmente, consegui assustar o pobre Daren. Ele se levanta e sai correndo. É uma reação humana comum e esperada, dada a condição do paciente.
Busquei acalmá-lo mas não pude mais manter o orbe de luz. Eu o havia feito o lume mais brilhante que eu podia. Tudo ficou escuro de novo e Daren, desesperado e gritando, derruba a mesa com um destilador e se corta  no vidro.
Ao acender as luzes, encontrei Daren ensanguentado e assustado em meio aos cacos de vidros.


“Daren se acalme.”

“Sai pra lá, filho do Capeta! Seu espírita, satanista, pupilo de Aleister Crowley, o padre de Satã!”

“Conheço o Capeta e te garanto que não é o meu pai. Também te juro que não sou necromante, nem acólito e quem me iniciou foi minha mãe, não Crowley. E Crowley nunca fez contato com Satã… mas coisa pior.”

“Sai de perto!”

“Tem que me deixar ajudá-lo, Daren. Está ferido em vários lugares e está sangrando muito.”

“Você é um mago, Adler! Um bruxo, um feiticeiro, um benzedeiro...”

“Não... só mago.”

“Não preciso de suas pajelanças de curandeiro. Vai balançar fumacinha e cantarolar suas mandingas em outro lugar!”

“Na minha caixa não tem fumacinha, Daren. Só pinça, esparadrapo e, bom, isto aqui pode te assustar um pouco: cânfora; arde mas te garanto que funciona.”
“Daren nunca te vi assustado assim! Você é adulto, pelo amor de Deus. Seja homem e levante daí.”

Finalmente, Daren voltou a si e me permitiu ajudá-lo. Enquanto eu cuidava dos seus ferimentos. Retomei nossa importante conversa.

“Achei que você fosse cético demais para acreditar no demônio.”

“Tive criação católica e hoje não sigo mais. Mas quando você me mostrou aquela luzinha, Adler, eu me esqueci de toda a ciência que aprendi, só havia me sobrado o outro tipo de conhecimento, o arcano da religião.”

“Apolo.”

“O que?”

“Somos amigos Daren, não precisa me chamar pelo meu sobrenome. Eu não te chamo de… Ryos, chamo?”

“Apolo, o Deus grego da luz. É por isso aquela luzinha?”

“Acredito que não, mas minha mãe acreditava realmente que absorvemos a essência de um deus se formos nomeados com o mesmo nome. Pasme, agora: meu nome completo é Odin Hórus Apolo Adler.”

“Odin Hórus Apolo, ahahahah! Desculpe os risos doutor, er Apolo. Sua mãe realmente acreditava mesmo nesse negócio de dar nome de deus. Então você faz essas luzinhas, igual ao deus Apolo?”

“Entre outras coisinhas. Mas coincidentemente eu uso muito o elemento Luz. Vai saber se não havia algo de verdade no que minha mãe acreditava sobre o nome dos deuses.”

“E porque você acha que eu sou clarividente a ponto de sonhar com o que está escrito em um livro que não li? Que eu saiba, eu não me chamo Cassandra.”

“Não tem a ver com o nome. Não está comprovado esse negócio de dar nome. Tem a ver com a força do pensamento. Quase sempre é a força do desejo que guia o pensamento; chamamos de ‘Força de Vontade.’ ”

“Então eu tenho força de vontade. O bastante para fazer essas luzinhas.”

“Abra sua mente, Daren. A força do desejo pode fazer muito mais do que luzinhas. Mas como cada mente é única, a força de vontade capacita cada um com coisas diferentes. Portanto é improvável que você também consiga usar o elemento Luz. Assim como é improvável que eu possa ter sonhos como os seus.”
“O livro é só um catalisador para a sua habilidade. Sua habilidade não tem a ver com ler livros. Eu entendo que sua habilidade tenha a ver com o passado.”

“Então você está dizendo que eu, tipo, adivinho o passado quando eu sonho.”

“Não, Daren, estou dizendo que você vai para o passado quando sonha!”


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