Do que é Feita a Bravura?

   Fomos seguindo pela mata com Jacimar e os cinco animados guerreiros! Estavam entusiasmados, pois o chefe deles lhes confiaram uma honorável missão. Riam e jubilavam conforme andavam. Eu, preocupado. Eu sabia o que estávamos prestes a enfrentar. Com guerreiros ao meu lado é mais fácil? Isso é bem relativo. Eu conhecia sequer o inimigo, como poderia estar animado? Sabia que era uma entidade, mas sequer sabia como aparecia. E sabia que os animais dessa floresta estavam ferozes além do normal; uma artimanha de Arimane, provavelmente. 
   Na real, esses guerreiros são caçadores e coletores. Guerrearam, no máximo, com outras tribos indígenas. Talvez eles não conheçam a derrota porque nunca combateram um inimigo realmente difícil. Por isso estão animados, eles estão certos que vencerão, porque não fazem a menor ideia do que enfrentarão. Não era mesmo alguma historinha da mitologia tupi, o inimigo deles é algo de horripilância inconcebível para a mentalidade deles! O ânimo e a coragem deles... de quê eram feitas? Inocência?
   Algumas horas sendo guiados até o atalho que a Jacimar conhecia, a realidade responderia à minha dúvida sobre nós mesmos. Estávamos em cima de uma ribanceira e, lá em baixo, um riacho escasso corria bravamente pelas pedras.
   Iuna parou repentinamente, Jacimar ficou alerta. Todos paramos, a floresta parou, o vento parou, um silêncio macabro inundou o ambiente. Um vulto salta em minha direção, o silêncio é quebrado pelo esturro ensurdecedor da fera; que me derruba e tenta alcançar o meu pescoço (que havia recebido tratamento na aldeia), sendo impedido apenas pelo meu braço esquerdo. Daí, um... vaaap! E um som maciço de um crânio sendo esmagado! Era Ubiratã que, atento, acertou a fera com seu poderoso ibirapema; mas logo é subjugado por outro animal, eram onças! Pense, se quatis eram ferozes e mortais, imaginem onças!

Enquanto eu tentava proteger Taynara, a mais jovem, eu procurava enxergar Kaíque, que não se encontrava mais à vista.
 Jacimar acertou uma flecha na onça enquanto Ubiratã se protegia do ataque, segurando a fera pelo pescoço, ela não conseguiu derrubar Ubiratã; dois guerreiros, de pé, embora de espécies diferentes, em uma peleja de força. A flecha de Jacimar é mal sentida pela onça, que continuava sua luta com o bravo índio. Jacimar aponta outra flecha, Jararaca abre o pote e molha um chumaço de palha em seu conteúdo. Jacimar faz uma mira caprichada e Jararaca, rapidamente, envenena a flecha dela com a palha. A flecha é disparada e acerta o pescoço do animal, que recua um pouco, sentindo o veneno; deixa Ubiratã e parece tentar entender o golpe que sofrera. 
   Enquanto o animal cambaleia com uma flecha no estômago e a garganta transpassada por outra flecha, Kaíque pareceu desaparecer de vista.  
  A onça ainda avança perigosa como um zumbi. Mas braços e pernas brotam da terra e envolvem a onça com um poderoso mata-leão. A figura de Kaíque, todo embarreado, se revela, enquanto ouvimos os estalos dos ossos da onça até que sua cabeça sem vida se pendura bizarramente atrás do ombro do índio. Kaíque larga a carcaça e olha sorridente para o seu amigo Jararaca, dizendo:       
   "Jybói!" – Evidentemente, a jibóia, no idioma tupi.
  Jararaca acena, demonstrando compreender a referência do amigo:
  "Hahaha… jybói!" – Jararaca curtiu o ataque “ofídeo” do companheiro que, embora não venenoso, também pode matar como cobra.
   Mas Iuna interrompe a brincadeira:
  "Shhiiiiu!" – E ergue, lentamente, três dedos. Sim, Iuna, com seu atento nariz, sabe que há outras três onças.
   Antes de entendermos completamente o sinal de Iuna, uma onça surge do nada, avança sobre a velha índia e um bolo de folhas, onça e índia caem da ribanceira até o leito raso do rio abaixo.  
   A onça começa a atacar a “senhora da noite” que, inconsciente, jaz indefesa. Alguns segundos depois Jacimar e eu pulamos a ribanceira em socorro, deixando Taynara escondida. 
  Assim que eu pude, agarrei a onça e a levei para o fundo, na tentativa de afogá-la antes dela me afogar. Jacimar logo me acompanha, me traz para a superfície e pisa na onça submersa, que certamente não se deteve em mordê-la na perna, como mostrou as feições de dor da pobre índia. Dois pares de pés, agora, afogando a onça com o passar dos minutos. 
  Enquanto observamos Iuna, ainda sem reação, já ensopando a margem do rio com o sangue que fluía de um grande ferimento em sua cabeça, aqueles minutos eternos afogando a onça foram um delírio estranho para mim. Um cenário triste vai se formando lentamente conforme observo, em slow motion, Jacimar chorando de dor, o rio borbulhando e rebatendo conforme a onça se afoga, a respeitável senhora vendada, embebida de sangue. No alto da ribanceira, como uma sinfonia de fundo sinistra, ouço os berros -  hora de dor, hora de bravura - dos outros três guerreiros, combatendo o que seriam, então, as outras duas onças. 
   O evento continuava, fazendo os segundos parecerem minutos, com os sons da água rebatendo, berros e choros se misturando, e eu olhando pasmo para cada evento diverso; Jacimar, a centímetros, rangendo os dentes, Iuna, a metros, em sua poça de sangue, e, ribanceira acima, as samambaias, juntos com árvores novas, dançando frenéticas, no ritmo daquela batalha oculta; eu repetia novamente o vislumbre de cada cena, sem poder dar mais ou fazer algo melhor, então senti o “tapa da realidade”. Sim, éramos bravos, mas não parecíamos páreos. E os cinco guerreiros, eram apenas singelos indiozinhos, aqueles mesmos dos livrinhos de história infantil, mas que pensam ser mais do que meros humanos, mas não conseguem, e agora recebem, vulneráveis, a consequência de suas inocências.
  Somente quando agonia felina terminou, eu volto do transe. Examinamos Iuna e não encontramos mais sinas de vida! Ela bateu a cabeça em uma pedra. Lamentávamos, queríamos dar a ela um funeral digno (que, no caso, seria sepultá-la em uma urna de cerâmica), mas apenas podíamos levá-la até a margem seca, colocá-la em posição fetal e seguir nosso caminho.
  Acima da ribanceira encontramos uma onça morta sem maxilar e um maxilar na mão de Ubiratã; e outra onça rígida, com um chumaço de palha na cavidade ocular! Mais distante uma onça com o crânio esmagado e aquele “saco de ossos” que outrora fora outra onça.
  Uma vitória em um cenário de derrota: As cinco onças pereceram, mas agora Jararaca está deitado com a barriga aberta, Taynara aterrorizada em seu esconderijo e Ubiratã sentado de costas chorando silenciosamente.
  Vimos o estado de Ubiratã e, por isso, não perguntamos imediatamente sobre o Kaíque, que não se encontrava presente. Ubiratã olha para trás, com seu âmago ferido, e pronuncia, em súplicas, palavras em tupi que não eu precisava de intérprete para entender.
  Acolhemos Ubiratã, que termina seu choro, discreto mas profundo, em meu ombro. Jacimar, então, traduz suas palavras:     
  "Ubiratã diz que precisou ajudar o Jararaca, que estava sendo atacado pelas duas onças, mas perdeu Kaíque de vista e agora se sente profundamente mal porque abandonou o amigo."
  Antes uma caravana regozijante e confiante, agora tínhamos Ubiratã desmoralizado, a adolescente Taynara em estado de choque, Jacimar com a perna mordida, Jararaca com as entranhas expostas, Iuna morta e Kaíque desaparecido. Não, não éramos heróis, não éramos lendas… éramos o que éramos e não o que pensávamos ser.

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